Vossa Excelência é uma pessoa singular!
“Há uma regra que diz que a concordância de Vossa Excelência deve seguir a terceira pessoa do singular. Eis que me surge uma dúvida, talvez gramatical, talvez histórica, ou talvez apenas uma confusão da minha mente. Por que expressões de tratamento usam o ‘Vossa’, indicativo da segunda pessoa do plural, se estamos nos referindo muitas […]
“Há uma regra que diz que a concordância de Vossa Excelência deve seguir a terceira pessoa do singular. Eis que me surge uma dúvida, talvez gramatical, talvez histórica, ou talvez apenas uma confusão da minha mente. Por que expressões de tratamento usam o ‘Vossa’, indicativo da segunda pessoa do plural, se estamos nos referindo muitas vezes a uma pessoa só?” Eduardo Pinheiro
O leitor tem razão quando observa que o pronome pessoal “vós” é reservado a discursos dirigidos a duas ou mais pessoas. As tarefas do singular já são bem desempenhadas pelo “tu” – ou, no caso do português falado pela maior parte dos brasileiros e a menos que a situação exija uma rara formalidade, “você”. Afinal, ninguém diz “vocês” quando fala com uma única pessoa. Esta é a lógica gramatical estrita.
Mas aí entra uma riqueza da língua. A variação estilística, que deforma essa lógica gramatical estrita em nome das necessidades de expressão, prevê o plural majestático, também chamado plural de modéstia. Assim como “nós” pode tomar o lugar de “eu” – recurso muito valorizado por políticos –, “vós” costuma ser empregado em vez de “tu” como sinal de reverência.
É o que ocorre com as expressões de tratamento, também chamados axiônimos, que intrigam Eduardo Pinheiro e que têm emprego garantido nos círculos do poder e da burocracia, como Vossa Excelência, Vossa Majestade, Vossa Santidade, Vossa Senhoria etc. A confusão que isso provoca na cabeça de muita gente pode ser desfeita levando-se em conta duas regras simples:
1. Usa-se Vossa Senhoria quando o discurso é dirigido à própria pessoa a quem se atribui senhoria, e Sua Senhoria para falar dela a terceiros.
2. A concordância – verbal e nominal – já foi motivo de controvérsia no português arcaico, mas desde o século 17 é feita sempre com a terceira pessoa do singular: “Vossa Excelência é ladrão!” (para citar uma frase de amplo emprego parlamentar) e nunca “Vossa Excelência sois ladrão (e muito menos ladrões)!”. A ideia por trás do deslocamento da segunda para a terceira pessoa é a de manter uma distância respeitosa, a mesma que está presente em uma frase banal como “O senhor já almoçou?”. Ainda bem que é assim. Foi graças a isso que a contração de “Vossa Mercê” – que virou “vosmecê” e depois “você” – pôde surgir para simplificar a vida.
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