Email não tem eu lírico
Ontem à tarde, falando da correspondência de Fernando Sabino com outros escritores – principalmente das cartas que ele trocou com Mário de Andrade e Clarice Lispector, publicadas nos livros “Cartas a um jovem escritor” e “Cartas perto do coração” – fiquei pensando em que buracos de fechadura irão os críiticos e historiadores culturais do futuro […]
Ontem à tarde, falando da correspondência de Fernando Sabino com outros escritores – principalmente das cartas que ele trocou com Mário de Andrade e Clarice Lispector, publicadas nos livros “Cartas a um jovem escritor” e “Cartas perto do coração” – fiquei pensando em que buracos de fechadura irão os críiticos e historiadores culturais do futuro bisbilhotar a intimidade dos escritores atuais, agora que a boa e velha carta é um gênero praticamente morto.
Eu conversava com dois colegas de jornalismo e literatura, Humberto Werneck e Luís Henrique Pellanda, no palco da Literata, um simpático encontro sediado em Sete Lagoas (MG), que este ano homenageou o autor de “O encontro marcado” . De nós três, Werneck revelou-se o maior entusiasta das cartas – até por uma questão geracional. Mas ninguém naquele palco ou na plateia conseguiu responder à pergunta: que meio de comunicação vai tomar o lugar das missivas como registro dos bastidores de vidas e carreiras que, no futuro, alguém achar interessante investigar?
Tecnicamente, como se sabe, foi o email que tomou o lugar das cartas. Mas isso, em vez de solução, é parte do problema. Voláteis, raramente impressos ou salvos deliberadamente em arquivos digitais, emails tendem a se desmanchar no ar, para começo de conversa. Ainda que se conservem, no entanto, o que fazer deles, com sua troca seca de informações, seus oks, abs e carinhas sorridentes? Email não tem eu lírico.
Escrever cartas ia muito além de simplesmente comunicar uma mensagem: era construir um personagem que escrevia cartas. Ou vários personagens, um para cada correspondente. Era encontrar um certa voz, um certo tom, algo que escritores, artistas da palavra, faziam com especial engenho. O missivista se expunha mais? Talvez se ocultasse mais, isso sim. Se existe verdade na famosa tirada de Nelson Rodrigues – “uma simples frase nos falsifica ao infinito” – o missivista era um tremendo falsificador. Mas são justamente essas estratégias de ocultamento as que mais revelam, embora a verdade desse paradoxo seja cada vez mais difícil de alcançar em nossa era de “transparência”, intimidades públicas e instantaneidade.