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Por Sérgio Rodrigues
Este blog tira dúvidas dos leitores sobre o português falado no Brasil. Atualizado de segunda a sexta, foge do ranço professoral e persegue o equilíbrio entre o tradicional e o novo.
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Dúvidas fúnebres: falecido, morto, morrido, matado

“Oi, Sérgio. Minhas congratulações pelos abalizados esclarecimentos com que você nos brinda no seu blog. Minha dúvida remete à recente substituição de ‘falecido’ por ‘morto’. Explicando melhor: até não muito tempo atrás, costumava-se dizer que fulano havia falecido (deixando implícita a idéia de morte natural). Atualmente, a imprensa parece ter optado por dizer que, por […]

Por Sérgio Rodrigues
Atualizado em 31 jul 2020, 05h34 - Publicado em 22 ago 2013, 13h47

“Oi, Sérgio. Minhas congratulações pelos abalizados esclarecimentos com que você nos brinda no seu blog. Minha dúvida remete à recente substituição de ‘falecido’ por ‘morto’. Explicando melhor: até não muito tempo atrás, costumava-se dizer que fulano havia falecido (deixando implícita a idéia de morte natural). Atualmente, a imprensa parece ter optado por dizer que, por exemplo, ‘fulano, morto em tal data’, o que, pelo menos para mim, favorece a idéia de morte violenta ou, no mínimo, decorrente de causas não naturais. Faz sentido? Grato pela sua atenção.” (Fernando Melis Neto)

“Olá, Sérgio. Sempre que ouço num telejornal ou leio uma notícia sobre a morte de alguém me sinto incomodado pela expressão ‘Fulano foi morto’. Afinal, é correto dizer que alguém foi morto?” (Henrique Wakimoto)

As consultas de Henrique e Fernando aparecem aqui juntas porque são complementares, como veremos abaixo.

Para começar do começo: a aversão da imprensa ao verbo falecer não nasceu ontem. É parte do “banho de soda cáustica” (para usar em contexto menos literário uma expressão do escritor Graciliano Ramos) que a linguagem jornalística brasileira, influenciada sobretudo pela americana, começou a tomar entre o fim dos anos 1950 e o início dos 60, a fim de purgar seus vícios bacharelescos e se tornar mais simples e direta.

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O empolamento vocabular que até então era considerado não apenas aceitável, mas em muitos casos até chique, virou marca de jornalismo ruim. Caíram em desgraça palavras como nosocômio (hospital), esposo e esposa (marido e mulher), urbe (cidade) etc. O substantivo falecimento (morte) e o verbo falecer (morrer) entraram nesse pacote, menos por seu possível rebuscamento do que por serem eufemismos, formas polidas de nomear uma realidade que, do ponto de vista jornalístico, considera-se melhor servir crua.

Tudo isso fez um bem enorme à saúde vocabular do país, mas Fernando tem razão quando aponta a porta aberta para uma ambiguidade: quando se lê algo como “fulano, morto em tal data”, é impossível dizer com certeza se “morto” é nesse caso particípio do verbo morrer ou do verbo matar. Fulano morreu ou mataram fulano?

É aí que vem a dúvida de Henrique: “É correto dizer que alguém foi morto?”. A resposta é simples – sim, claro, se o tiverem matado – mas requer uma explicação que não soa tão óbvia. Vamos a ela.

O verbo morrer compartilha com muitos outros, como gastar, entregar e eleger, uma característica que os gramáticos chamam de abundância. Isso quer dizer apenas que tem dois particípios: um regular, morrido, e um irregular, morto. O primeiro se usa em geral com o verbo ter (“a enfermeira custou a perceber que o paciente tinha morrido”) e o segundo, com os verbos ser/estar (“quando cheguei, ele já estava morto”).

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A parte interessante da história começa agora: o verbo matar, que também é abundante, tem o mesmo particípio irregular de morrer. Exemplos: “O pistoleiro tinha matado (regular) muita gente em sua cidade antes de vir para a capital; mal chegou aqui, foi morto (irregular) pela polícia”.

Por que ocorre essa interseção? Por uma razão singela: séculos atrás, o verbo matar simplesmente roubou o particípio irregular de morrer e saiu a usá-lo por aí, todo pimpão, como se fosse seu dono. Em sua excelente “Gramática histórica da língua portuguesa”, o filólogo brasileiro Said Ali afirma que o eufemismo, a intenção de suavizar uma expressão considerada grosseira ou violenta demais, explica o fato curioso.

Escreve Ali: “É singular a aversão que sempre manifestaram os escritores portugueses pelo particípio derivado naturalmente do verbo matar…”. Em seguida acrescenta que “a gente letrada cristã, quinhentista e seiscentista, conservou-se fiel à tradição de pedir o particípio emprestado ao verbo morrer, dando-lhe significação ativa”.

Assim foram criadas as condições para que, volta e meia, Fernando se confunda com o emprego de “morto” pela imprensa. De fato, a ambiguidade de uma mensagem é tão indesejável no discurso jornalístico quanto o rebuscamento do estilo. Como resolvemos isso? Não resgatando o “falecido”, por favor: tudo menos a volta do bacharelismo! Basta ter atenção e modificar a construção – de “morto em tal data” para “que morreu em tal data”, por exemplo – sempre que ela soar ambivalente.

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