A tirania do leitor
– …e mais uma lista enorme de narradores que um dia o mantiveram sob seu sortilégio, e que por isso mesmo ele leu até enjoar. E enjoou. E foi em frente. A infidelidade era compulsiva. A fila de escritores diante dele, à espera de serem lidos, infinita. De repente aconteceu: ele começou a ficar besta. […]
– …e mais uma lista enorme de narradores que um dia o mantiveram sob seu sortilégio, e que por isso mesmo ele leu até enjoar. E enjoou. E foi em frente. A infidelidade era compulsiva. A fila de escritores diante dele, à espera de serem lidos, infinita. De repente aconteceu: ele começou a ficar besta.
– A quem o senhor se refere?
– Ao leitor, ora. O submisso leitor, de tanto ler, deu um jeito de criar sua própria tirania sobre os escritores. Como? Condenando-os, desprezando-os, descartando-os aos magotes após a leitura de meia página. Dizendo, com uma arrogância de velha prostituta que já se entregou a muito prosador nessa vida, que falta-lhes o mínimo, o mais básico cacoete.
– Mas o senhor não acha que o leitor tem esse direito?
– O leitor? Claro que tem. Mesmo assim é preciso reconhecer que a decisão dele sobre o que é o mínimo, o mais básico cacoete para um escritor, é tirânica. Ele pode achar que o sujeito não preenche certos requisitos indispensáveis ligados ao tema, ao gênero, ao tom, ao estilo, à escolha vocabular, ao uso da linguagem. Ou então a posturas políticas, ideológicas, morais. Ou mesmo ao penteado ou à roupa que escolheu para aparecer na orelha.
– Acho tudo isso normal.
– É mais do que normal, meu jovem: é inevitável. É a vida. Mas a verdade é que, embora a princípio a literatura seja mesmo feita para ele, para o leitor tirânico, a qualidade literária não tem absolutamente nada a ver com as simpatias ou antipatias do nosso mimado personagem.
– E tem a ver com o quê?
– Bom, isso ninguém sabe direito. Eu também não sei, mas diria que tem alguma coisa a ver com o mais óbvio, o mais simples e rasteiro. O modo como uma palavra se segue a outra, como elas se engatam em comboios e vão embora, negociando passagem nos cruzamentos, emitindo apitos sintáticos. Música, sim, por um lado – puro som. E por outro, pensamento puro. Eis o mistério da literatura. Sim, eu me lembro bastante bem. E morro de saudade.
– Morre de saudade? Não entendi.
– Ué, não é óbvio? Aquele leitor tirânico sou eu. Quem leu até enjoar e enjoou fui eu. O cara que condena ao silêncio eterno os escritores, todos eles, após a leitura de meia página, sou eu. Sou eu o pobre coitado, o miserável, o aleijão, o monstro, entendeu? Eu o ditador cruel e solitário, hahahahahaha!
– Hã, interessante, mas acho que estão chamando o meu voo. Obrigado pelo papo, o senhor é muito culto, foi um prazer conhecê-lo.
– Boa viagem, meu filho! Está levando alguma porcaria para ler?