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Rebeldes primitivos, pensadores idem

Ao longo da história, a visão idealizada sobre o pobre — uma das muitas heresias do cristianismo — foi substituída pela glorificação da marginalidade, e esta é uma das heresias do marxismo. Marx, Lênin, Trotsky, Gramsci… Não há um só miserável pensador (e militante pra valer) da esquerda que de fato tenha feito história (ainda […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 20h19 - Publicado em 8 out 2007, 17h36
Ao longo da história, a visão idealizada sobre o pobre — uma das muitas heresias do cristianismo — foi substituída pela glorificação da marginalidade, e esta é uma das heresias do marxismo. Marx, Lênin, Trotsky, Gramsci… Não há um só miserável pensador (e militante pra valer) da esquerda que de fato tenha feito história (ainda que para o mal) que endosse ou endossasse as bobagens ditas por Ferréz. Não há ali teoria revolucionária. Há exaltação do banditismo, e, no que concerne à política, quando muito, exalta-se o pobrismo.

Hobsbawm, citado por Nelson Ascher (ver post abaixo), tem um livro interessante chamado Rebeldes Primitivos. Eu escrevi “interessante”, não escrevi “bom”. A rebeldia de movimentos de protesto contra o capital, no século 19, guardaria uma intimidade e um estranhamento com os movimentos revolucionários: as motivações seriam idênticas, mas seu alcance, distinto. Porque faltaria àquelas ações a direção política e a devida compreensão do processo histórico, e isso só foi alcançado pelos movimentos socialistas. Hobsbawm é o que restou, e é pouco, da “esquerda pensadora” e, de fato, “marxista”.

Pois bem. Os socialistas inventaram para si mesmos uma história evolutiva, a partir de pistas fornecidas pelo próprio Marx: o socialismo teria caminhado da fase utópica para a científica, quando, então, a revolução passa a ser, para eles, o resultado de uma equação. Notem bem: equação a ser ensinada à militância; uma equação extraída da própria natureza do processo social, já que o horizonte socialista, para os marxistas autênticos, é um horizonte fatal, não uma escolha. Uma ou outra coisa podem retardar o advento, mas não impedir. Nada mais é do que uma versão sem Deus do Juízo Final. Todas as religiões têm estruturas semelhantes, como sabem.

Fim da URSS, queda do Muro de Berlim, triunfo da globalização, mercados sem fronteiras, “comunismo” chinês de mercado… A esquerda está desmoralizada, perdeu suas bandeiras, não tem para onde correr. E o que ela faz? Renuncia, então, àquilo que pretendia ser o aporte científico de sua formulação — “a classe operária (que também acabou) é revolucionária” — e se volta para a glorificação de uma versão contemporânea dos rebeldes primitivos: Mano Brown, Ferréz, sei lá quem de calça caindo com a cueca à mostra.

Ocorre que a vitória do capitalismo é tão avassaladora, que também essas vozes da contestação só existem como uma faceta da cultura de mercado. Ou será que Mano Brown não manipula, com esperteza, a sua fama de mau? Ou será que Ferréz não obtém vantagens de sua condição de “pensador” do Capão Redondo? Não interessa. Eles passam a ser os, vá lá, “ícones” daqueles que assumem o papel de críticos do capitalismo. São a encarnação do “bom selvagem” dos sonhos de justiça de Maria Rita Kehl (veja no arquivo o que escrevi sobre a sua atuação no Roda Viva) e, por que não?, de Fernando de Barros e Silva.

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Não disputarei com ambos um braço-de-ferro para saber quem conhece mais de perto o pobre e a pobreza. Tenho horror à demagogia. Mas também à solidariedade putativa com a “causa dos oprimidos”. Até porque, convenham, o que importa não é a origem social do crítico, certo?, mas os seus “compromissos”. O sujeito pode ter uma origem burguesa e ser um exímio revolucionário, a exemplo de Che Guevara — exímio mesmo, até na celeridade com que prendia, julgava e matava. E pode, claro, ser um trânsfuga como este escrevinhador: da favela para a suspeição de pena de aluguel de plutocratas da mídia. No fim das contas, diria um realista, o que importa é o que os trânsfugas de ambos os lados fazem de prático para ver realizadas suas utopias, certo? O que importa é o que Barros e Kehl fazem de efetivo para libertar os oprimidos e o que eu faço para mantê-los subjugados, agora que não sou mais um deles e decidi lhes dar um pé no traseiro.

O balanço seria vexaminoso pra mim e pra eles. Nem eles libertam ninguém nem eu oprimo ninguém. Atuamos todos, quando muito, no fórum da opinião pública, com questões que dizem respeito a valores. Eu não consigo condescender com o crime e com a violência; também não simpatizo com as teorias que vêem na origem social do indivíduo a gênese de suas escolhas morais. Trata-se, é verdade, de uma constatação de sua duas faces:
1) conheço os pobres de perto — não de manual, a exemplo do bom burguês esquerdista —, e sei que podem ser bons e podem ser maus, como quaisquer indivíduos. Mas não superestimo a experiência pessoal;
2) também o que li, e não apenas o que vivi, me indica que o cumprimento da lei, numa ordem democrática, é o melhor caminho para a solução de conflitos. Não é uma escolha tranqüila. A suposta legitimidade da violência está sempre assombrando a legalidade.

E a linha final do item 2 vai me levando para a conclusão deste post. A esquerda tinha uma utopia, a que não faltou, como todos sabemos, a justificação do crime, se necessário, em nome do porvir. Abaixo, Ascher toca numa questão central: Hobsbawm, o marxista, o revolucionário, o defensor do poder operário, continuou fiel à URSS, quando ela mantinha um pacto com a Alemanha nazista, em vez de se alinhar com o Inglaterra. Sob certas circunstâncias, para um comunista, o nazismo pode se constituir numa boa aliança estratégica…

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Mas aquele ainda era o esquerdismo que se queria “científico” — mesmo que a racionalidade a que apelasse, sob o pretexto de ser dialética, nada mais fosse do que a justificativa do mal. Os modernos esquerdistas, sem mais aparato racional que justifique as suas utopias, voltaram ao estágio anterior ao do “socialismo científico”: são, em tudo e por tudo, pré-modernos; passaram a exaltar os “rebeldes primitivos” (de resto, falsos porque beneficiários do capitalismo, a exemplo de qualquer um que eles chamam “burgueses”); passaram a aderir a formulações que, a rigor, seriam pré-políticas. E erram até nisso, já que o PT, obviamente, instrumentaliza essa “rebeldia”.

A periferia de São Paulo ou os morros do Rio seriam uma espécie de manguezal ou de ninhal de uma nova verdade — não, melhor ainda: da mesma e eterna verdade: a verdade do oprimido. É evidente que nada há mais de marxismo aqui; estamos de volta às mesmas formulações dos socialistas utópicos, tão severamente combatidos por Marx. E notem que a prática não dispensa nem o velho e surrado paternalismo. Pressentindo que Ferréz tinha passado da conta ao sugerir que a troca de um relógio pela vida é justa, Fernando Barros escreve: “Mas a conclusão de que ‘todos saíram ganhando’ e, afinal, ‘num mundo indefensável, até que o rolo foi justo para ambas as partes’ equivale a fazer a apologia do crime e da barbárie em nome de uma suposta crítica das injustiças sociais. O texto chocará muita gente de boa-fé e joga água no moinho do preconceito contra pobres, pretos e motoboys, à revelia das intenções do autor.” Como a gente vê, para o articulista, o pior do artigo de Ferréz não está no que ele diz, mas no eventual mau uso que só possa fazer daquilo — como se pudesse haver um bom uso. É como se dissesse: “Não dê corda para os inimigos, Ferréz; seja mais esperto; seja mais estratégico”.

Faz sentido. Quem cultiva rebeldes primitivos precisa mantê-los sob alguma forma de tutela, não é?

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