Os criminosos do mensalão e a má tradição da pena mínima para crimes contra a vida
O ministro Marco Aurélio Mello decidiu ser, brinquei em outro post, o “terceiro polo” do julgamento, além de relator — Joaquim Barbosa — e revisor: Ricardo Lewandowski. Resolveu esposar uma tese a que nem o próprio revisor deu curso nas suas intervenções: pretende que crimes considerados autônomos ao longo do julgamento mereçam a caracterização, na […]
O ministro Marco Aurélio Mello decidiu ser, brinquei em outro post, o “terceiro polo” do julgamento, além de relator — Joaquim Barbosa — e revisor: Ricardo Lewandowski. Resolveu esposar uma tese a que nem o próprio revisor deu curso nas suas intervenções: pretende que crimes considerados autônomos ao longo do julgamento mereçam a caracterização, na fase da dosimetria, de “continuidade delitiva”. Parece que a soma total das penas deixou assustados um ou outro ministros. Aqui e ali, dentro e fora do tribunal, começa a circular uma tese, máxima vênia, estúpida: “Como pode Suzane von Richthofen matar os próprios pais, nas circunstâncias cruéis em que os crimes se deram, e ser condenada a 39 anos, e Marcos Valério, que não matou ninguém, levar 40?”
Pois é… O tolo raramente cuida de todas as implicações de suas ilações, não é? Notem: a ser assim, os homicídios, os executados da forma mais torpe, como é o caso, seriam o limite das penas impostas no país, pouco importando quantos crimes pudessem praticar, por exemplo, os criminosos do colarinho branco.
Por que Valério foi condenado a 40 anos, ainda que não tenha matado ninguém? Porque o tribunal concluiu que cometeu uma penca de crimes, ora essa! E esses crimes têm as suas respectivas penas definidas em lei. Se a soma resulta em 40 anos — e todo mundo sabe que ele poderia cumprir, em regime fechado, apenas um sexto dela (menos de sete anos) —, assim é por causa das coisas que ele fez. O que isso tem a ver com a assassina dos próprios país ou com outros crimes de sangue? Resposta: nada!
Vamos devagar
Considerar que a corrupção ativa está em continuidade delitiva com o crime de peculato é uma ofensa à inteligência. Ora, poder-se-ia comprar um parlamentar com dinheiro privado, por exemplo. E estaria caracterizada a corrupção ativa, certo? Mas, se foi com dinheiro público — e, para tanto, se enfiou a mão na grana do Banco do Brasil —, não se está aí diante de um crime obviamente autônomo? Ora, não dá nem pra afirmar que o dinheiro que foi para os mensaleiros era aquele do Banco do Brasil, certo?
Mais ainda: somem-se todos os recursos distribuídos aos políticos — ao menos aquilo que se conseguiu descobrir —, e se vai verificar que o total está muito longe dos mais de R$ 76 milhões que foram surrupiados do banco. Que diabo de “continuidade delitiva” é essa? O conjunto da obra evidencia que se roubou dinheiro público também para outros fins que não o pagamento de políticos, não é? A depender de como se leia essa história, convenham, todos os crimes dos condenados por formação de quadrilha estariam em continuidade delitiva.
É claro que se trata de uma questão delicada e polêmica. Li outro dia uma coisa que me deixou meio estarrecido. Uma mulher matou o marido. Descobriu que havia uma testemunha do homicídio. Matou-a também. Foi condenada por um assassinato e por outro, e as penas se somaram. Os advogados apelaram ao Tribunal de Justiça de São Paulo alegando que a segunda morte estava em… continuidade delitiva. Perderam. Apelaram ao STJ e… ganharam! Ou por outra: o primeiro cadáver rendeu-lhe pena de homicídio; o segundo foi considerado mero fator agravante… A mim me parece uma decisão escandalosa! Queira Deus que o critério adotado por Lewandowski para o acréscimo das penas não faça escola também nessa área. Ele estabeleceu que amplia a pena em apenas um sexto quando o crime se repete até 15 vezes; em um quarto, quando de 16 a 25; e só opta por um terço (nem cogita os dois terços, limite possível da majoração) quando repetido mais de 25 vezes…
Aliás, não sei como aquele caso prosperou. A Súmula 605 do STF, que é de 1984, deixa claro:
Súmula nº 605 – 17/10/1984
Não se admite continuidade delitiva nos crimes contra a vida.
A lei
O que diz o Artigo 71 do Código Penal? Isto:
“Art. 71 – Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. (Redação dada pela Lei nº 7.209 , de 11.7.1984)”
Pois é… O peculato pelo qual foi condenado Marcos Valério na Câmara, por exemplo, guarda, por acaso, relação de “tempo, lugar e maneira de execução” com o praticado no Banco do Brasil? Eles só têm uma coisa em comum: são dois peculatos! Nem os comparsas são os os mesmos…
Pena mínima
A desordem, nessa área, é grande. Ao mesmo tempo em que temos 70 mil presos espalhados em cadeias Brasil afora, em situação obviamente irregular e sem assistência judicial, há uma certa tradição firmada da pena mínima no país quando os criminosos são julgados — mesmo nos chamados crimes de sangue; mesmo nos chamados crimes contra a vida. Como esquecer o caso emblemático da atriz Daniella Perez? Foi assassinada em 1992 com 18 — !!! — golpes de punhal. Os assassinos, Guilherme de Pádua e sua então mulher, Paula, foram à delegacia consolar a mãe da atriz, a novelista Glória Perez… Ele foi condenado a 19 anos de prisão; ela, a 18 anos e seis meses. Deixaram a cadeia antes de cumprir sete anos de pena. Menos de sete anos em regime fechado por um assassinato, cometido com requintes de crueldade e posterior cinismo? Além de não parecer razoável, não é razoável!
O que uma coisa tem a ver com outra? Volto lá ao ponto inicial. Esse laxismo nos crimes de sangue tem levado alguns setores a fazer juízos exóticos no julgamento do mensalão. Inaceitável, isto sim, é que se possa matar uma pessoa com requintes de crueldade e ficar em cana menos de sete anos. De resto, um criminoso do colarinho branco pode, sim, ter uma pena superior à de um homicida a depender do número de crimes que tenha praticado.