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Na América do Sul, jesuítas já aderiram à… luta armada! O confronto é tema de um poema épico

Calma, leitores! A Companhia de Jesus na América Latina foi, sim, infiltrada por esquerdistas, mas estou aqui a tratar de outro assunto. No primeiro post que escrevi sobre o papa Francisco I, lembrei que a Companhia de Jesus, ao longo da história, entrou em confronto com a cúpula da Igreja Católica e com os colonizadores […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 06h41 - Publicado em 13 mar 2013, 22h47

Calma, leitores! A Companhia de Jesus na América Latina foi, sim, infiltrada por esquerdistas, mas estou aqui a tratar de outro assunto. No primeiro post que escrevi sobre o papa Francisco I, lembrei que a Companhia de Jesus, ao longo da história, entrou em confronto com a cúpula da Igreja Católica e com os colonizadores da América, tanto portugueses como espanhóis. O assunto gerou um dos dois poemas épicos escritos por brasileiros: “O Uraguai”, de Basílio da Gama — o outro é “Caramuru”, de Santa Rita Durão.

Vocês certamente conhecem os chamados Povos das Missões, comunidades indígenas fundadas por jesuítas espanhóis no Rio Grande do Sul. Ao todo, eram sete “reduções” (comunidades indígenas): São Francisco de Borja, São Nicolau, São Miguel Arcanjo, São Lourenço Mártir, São João Batista, São Luiz Gonzaga e Santo Ângelo Custódio. Cada uma delas abrigava mais ou menos uns 2 mil índios, sob o comando dos jesuítas. São Lourenço Mártir chegou a contar com 6.500 habitantes.

As ruínas estão lá até hoje. Em 1750, Portugal e Espanha celebram o Tratado de Madri. Ficou acertado, entre muitos outros pontos, que os sete povoados, sob o comando dos jesuítas espanhóis, seriam entregues ao controle português, e a comunidade de Sacramento (hoje Colônia do Sacramento), que era portuguesa e ficava no Uruguai, passaria para a gestão espanhola.

Os índios, sob a inspiração dos jesuítas, se rebelam e tentam impedir o trabalho de demarcação. Portugal e Espanha, que viviam às turras por causa das fronteiras, impõem o Tratado de Madri literalmente a ferro e fogo. Tropas conjuntas atacam os povoados, até liquidá-los. É provável que tenha sido o conflito em solo brasileiro que mais tenha feito vítimas. Os confrontos são conhecidos como “Guerras Guaraníticas”. Só na Batalha de Caiboaté, estima-se que morreram de 1.200 a 1.500 índios, incluindo o líder Sepé Tiaraju.

O poema
O mineiro Basílio da Gama, ele próprio um jesuíta que acabou abandonando a ordem, narrou o cerco das tropas de Portugal e Espanha às missões no poema “O Uraguai”. É um texto interessante, de que eu gostava especialmente de tratar quando professor.

Por quê? O poema é dedicado ao irmão do Marquês de Pombal, inimigo dos jesuítas, como se sabe. Assim, tem um inegável aspecto áulico. Mas há sutilezas que transcendem também as limitações de um tempo.

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São três os heróis da narrativa: Gomes Freire de Andrade (importante para a história do Rio de Janeiro – pesquisem), e os índios Cacambo e Sepé. Andrade representa a Coroa e o poder do estado. Tenta convencer os índios de que eles são, na verdade, escravos dos jesuítas. Cacambo aponta a crueldade dos brancos, mas acredita na possibilidade de um acordo. É a ponderação. Sepé, ao contrário, coloca-se como a voz dos índios que defendem o seu direito à terra, sem condicionantes. Expostas as visões de mundo, inconciliáveis, não resta outro caminho que não a guerra.

No poema, Basílio da Gama livra a cara dos portugueses (estão cumprindo a sua missão) e dos índios (são homens bons, porem enganados) e trata com extrema severidade os jesuítas, vistos como uma ordem de conspiradores.

Segue abaixo um trecho do Canto Dois, que narra justamente a morte de Sepé. Havendo algum leitor que tenha sido meu aluno, há de se lembrar que era um dos trechos de que eu costumava tratar em sala. Observem que, embora Basílio da Gama considere que os índios estão do lado errado da batalha, são tratados como heróis, como valentes guerreiros (prestem atenção aos negritos).

(…)
Nem resistem mais tempo às espingardas.
Vale-lhe a costumada ligeireza,
Debaixo lhe desaparece a terra
E voam, que o temor aos pés põe asas,
Clamando ao céu e encomendando a vida
Às orações dos padres. Desta sorte
Talvez, em outro clima, quando soltam
A branca neve eterna os velhos Alpes,
Arrebata a corrente impetuosa
Co’as choupanas o gado. Aflito e triste
Se salva o lavrador nos altos ramos,
E vê levar-lhe a cheia os bois e o arado.
Poucos índios no campo mais famosos,
Servindo de reparo aos fugitivos,
Sustentam todo o peso da batalha,
Apesar da fortuna. De uma parte
Tatu-Guaçu mais forte na desgraça
Já banhado em seu sangue pertendia
Por seu braço ele só pôr termo à guerra.
Caitutu de outra parte altivo e forte
Opunha o peito à fúria do inimigo,
E servia de muro à sua gente.
Fez proezas Sepé naquele dia.
Conhecido de todos, no perigo
Mostrava descoberto o rosto e o peito
Forçando os seus co’ exemplo e co’as palavras.
Já tinha despejado a aljava toda,

E destro em atirar, e irado e forte
Quantas setas da mão voar fazia
Tantas na nossa gente ensanguentava.
Setas de novo agora recebia,
Para dar outra vez princípio à guerra.
Quando o ilustre espanhol que governava
Montevidio, alegre, airoso e pronto
As rédeas volta ao rápido cavalo
E por cima de mortos e feridos,
Que lutavam co’a morte, o índio afronta.
Sepé, que o viu, tinha tomado a lança
E atrás deitando a um tempo o corpo e o braço
A despediu. Por entre o braço e o corpo
Ao ligeiro espanhol o ferro passa:
Rompe, sem fazer dano, a terra dura
E treme fora muito tempo a hástea.
Mas de um golpe a Sepé na testa e peito
Fere o governador, e as rédeas corta
Ao cavalo feroz. Foge o cavalo,
E leva involuntário e ardendo em ira
Por todo o campo a seu senhor; e ou fosse
Que regada de sangue aos pés cedia
A terra, ou que pusesse as mãos em falso,
Rodou sobre si mesmo, e na caída
Lançou longe a Sepé. Rende-te, ou morre,
Grita o governador; e o tape altivo,
Sem responder, encurva o arco, e a seta
Despede, e nela lhe prepara a morte.
Enganou-se esta vez. A seta um pouco
Declina, e açouta o rosto a leve pluma.
Não quis deixar o vencimento incerto
Por mais tempo o espanhol, e arrebatado
Com a pistola lhe fez tiro aos peitos.
Era pequeno o espaço, e fez o tiro
No corpo desarmado estrago horrendo.
Viam-se dentro pelas rotas costas
Palpitar as entranhas. Quis três vezes
Levantar-se do chão: caiu três vezes,
E os olhos já nadando em fria morte
Lhe cobriu sombra escura e férreo sono.
Morto o grande Sepé, já não resistem
As tímidas esquadras. Não conhece
Leis o temor. Debalde está diante,
E anima os seus o rápido Cacambo.
Tinha-se retirado da peleja
Caitutu mal ferido; e do seu corpo
Deixa Tatu-Guaçu por onde passa
Rios de sangue. Os outros mais valentes
Ou eram mortos, ou feridos. Pende
O ferro vencedor sobre os vencidos.
Ao número, ao valor cede Cacambo:
Salva os índios que pode, e se retira.

No Canto Cinco, o autor não faz por menos e demoniza os jesuítas, vistos como conspiradores. No suposto templo que abrigaria os religiosos, ele enxerga o que seriam todas as conspirações da Companhia de Jesus em escala… mundial! Estaria tudo desenhado na abóbada. Leiam trecho. Volto em seguida.

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Na vasta e curva abóbada pintara
A destra mão de artífice famoso,
Em breve espaço, e Vilas, e Cidades,
E Províncias e Reinos. No alto sólio
Estava dando leis ao mundo inteiro
A Companhia. Os Cetros, e as Coroas,
E as Tiaras, e as Púrpuras em torno
Semeadas no chão. Tinha de um lado
Dádivas corruptoras: do outro lado
Sobre os brancos altares suspendidos
Agudos ferros, que gotejam sangue.
Por esta mão ao pé dos altos muros
Um dos Henriques perde a vida e o reino.
E cai por esta mão, oh céus! Debalde
Rodeado dos seus o outro Henrique,
Delícia do seu povo e dos humanos.
Príncipes, o seu sangue é vossa ofensa.
Novos crimes prepara o horrendo monstro.
Armai o braço vingador: descreva
Seus tortos sucos o luzente arado
Sobre o seu trono; nem aos tardos netos
O lugar, em que foi, mostrar-se possa.
Viam-se ao longe errantes e espalhados
Pelo mundo os seus filhos ir lançando
Os fundamentos do esperado Império
De dous em dous: ou sobre os coroados
Montes do Tejo; ou nas remotas praias,
Que habitam as pintadas Amazonas,
Por onde o rei das águas escumando
Foge da estreita terra e insulta os mares.
Ou no Ganges sagrado; ou nas escuras
Nunca de humanos pés trilhadas serras
Aonde o Nilo tem, se é que tem, fonte.
Com um gesto inocente aos pés do trono
Via-se a Liberdade Americana
Que arrastando enormíssimas cadeias
Suspira, e os olhos e a inclinada testa
Nem levanta, de humilde e de medrosa.
Tem diante riquíssimo tributo,
Brilhante pedraria, e prata, e ouro,
Funesto preço por que compra os ferros.
Ao longe o mar azul e as brancas velas
Com estranhas divisas nas bandeiras
Denotam que aspirava ao senhorio,
E da navegação e do comércio.
Outro tempo, outro clima, outros costumes.
Mais além tão diversa de si mesma,
Vestida em larga roupa flutuante
Que distinguem barbáricos lavores,
Respira no ar chinês o mole fasto
De asiática pompa; e grave e lenta
Permite aos bonzos, apesar de Roma,
Do seu Legislador o indigno culto.
Aqui entrando no Japão fomenta
Domésticas discórdias. Lá passeia
No meio dos estragos, ostentando
Orvalhadas de sangue as negras roupas.
Cá desterrada enfim dos ricos portos,
(…)

Voltei
O poema é formidavelmente rico em referências. Dou aqui umas pinceladas rápidas. Vejam naquele trecho em negrito. A “Companhia” (de Jesus) a tudo dominaria: cidades, reinos, províncias e também “os centros, as coroas e as tiaras” — vale dizer, o papado estaria sob o seu jugo. Basílio da Gama atribui aos jesuítas a morte de dois reis franceses — Henrique III e IV – e fala de sua presença em todo o mundo — China, Japão, Índia… Onde quer que esteja presente, a ordem aparece levando a discórdia e a morte…

Não foram poucos os inimigos que a Companhia de Jesus fez ao longo de quase 500 anos. Mas sobrevive como a maior ordem da Igreja Católica, com quase 20 mil membros espalhados em todos os continentes.

Um jesuíta da América Latina, a terra onde a Companhia de Jesus organizou uma luta armada, chega ao Trono de Pedro. Quem disse que a Igreja, em seus dois mil anos, é refratária a mudanças, hein? Depois de quase 500, já aceita o comando de um jesuíta.

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