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De cães e de homens

Houve uma verdadeira comoção nas redes sociais, e não sem razão, por causa de um cachorrinho espancado até a morte por uma mulher na presença de uma criança. Comecei a ver e parei. Não tenho estômago para essas coisas. Esse tipo de brutalidade, com gente ou com bicho, me deixa, sem exagero, de estômago meio […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 09h53 - Publicado em 18 dez 2011, 07h49

Cotó, o meu amigão, que se foi em outubro

Cotó, o meu amigão, que se foi em outubro

Houve uma verdadeira comoção nas redes sociais, e não sem razão, por causa de um cachorrinho espancado até a morte por uma mulher na presença de uma criança. Comecei a ver e parei. Não tenho estômago para essas coisas. Esse tipo de brutalidade, com gente ou com bicho, me deixa, sem exagero, de estômago meio embrulhado. O desconforto, moral em primeiro lugar, passa imediatamente a ser físico. Gosto de animais. Quando moleque, tive gatos — muitos: catava os filhotes abandonados na rua e os levava pra casa, o que deixava a minha mãe louca da vida —, papagaio, pomba, porquinho da índia, coelho daquele orelhudo… Moram aqui conosco, vocês sabem, duas cachorras e uma tartaruga. Escrevi, não faz tempo, o adeus a Cotó, o meu amigão que vocês vêem aí no alto, que morreu em outubro. A crueldade daquela moça, pouco importa o pretexto, é incompreensível pra mim. Do pouco que vi, não se tratava de alguém num ataque de fúria, vingando-se de alguma coisa desagradável que o cão tivesse feito. Sua brutalidade era meio burocrática, pausada, refletida até. Como pode?

Costumo escrever sobre a chamada macropolítica, isto que as pessoas entendem normalmente por política: o jogo do poder, as forças que se organizam para dominar o estado e governar a sociedade, os partidos etc. Mas gosto mesmo é quando surge um tema que diz respeito à política dos indivíduos, àquilo que cada um de nós entende sobre a vida, as pessoas, as relações. Eu levo a sério a máxima de que, ao fazer escolhas no dia a dia, escolhemos em que mundo queremos viver, anunciamos o nosso ideal. O homem sempre há de se perguntar, diante de um ato que tem conseqüências que vão além da sua própria vida, se o mundo seria melhor ou pior se todos agissem como ele. Quem se nega a fazer essa pergunta é, potencialmente ao menos, um monstro moral.

O psicopata não reconhece a existência do “outro”; o sociopata não reconhece a existência dos outros. Aqueles delinqüentes que vemos a jogar latinhas de cerveja na pista nunca pararam para refletir como seriam as estradas se todos fizessem o mesmo. Os que ultrapassam pela direita, andam no acostamento ou varam o sinal vermelho só agem desse modo na certeza de que a maioria cumpre as leis. Não duvidem: indivíduos com esse comportamento costumam ficar furiosos caso sejam prejudicados por ação idêntica. Entendem que seu papel é andar fora das regras; o dos outros é cumpri-las.

A moça que espancou o cachorro é enfermeira. O fato gerou uma onda de especulações. Se trata assim um bicho, o que não fará com os seus doentes? A pergunta, notem, cheia de justa indignação, não deixa de trair uma inversão, ou uma subversão, de valores. Parece-me que a boa tradição humanista nos recomenda outra constatação: quem não respeita nem os seres humanos tampouco há de respeitar os cães. Entendo, no entanto, as ilações a que o caso convida: ela só se portou daquele modo porque a vítima não tinha como se defender, como contra-atacar. Matar um yorkshire, convenham, é coisa para covardes. Os valentes tentariam pegar na unha um pit bull ou um rottweiler. Doentes, numa cama, estariam mais para yorkshire…

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Sim, a indignação faz sentido, e o fato de ela ser enfermeira parece ser um constrangimento adicional. Mas também é preciso saber a hora em que as coisas passam do ponto. Os comentários que circulam na rede sobre aquela senhora são horripilantes. E até alguns políticos já decidiram dar pitaco. Há quem pregue abertamente que ela seja submetida ao mesmo tratamento que dispensou ao cachorro, o que nos joga, no que diz respeito àquele terreno das escolhas, numa situação muito delicada: seria aceitável que se fizesse com um ser humano o que consideramos, e com razão, inaceitável que se faça com um cão?

Na era das redes, é preciso ir devagar. É mais fácil linchar pessoas do que matar cachorros, e uma e outra coisa são inaceitáveis. Se essa moça, por qualquer razão, fosse presa numa cela comum, correria, de fato, um sério risco de experimentar o tratamento que dispensou ao yorkshire, e não faltaria quem dissesse: “Mais do que merecido! Como ela pôde fazer aquilo com um bichinho, que nem podia se defender?” O amor pelos bichos que nos humaniza é virtuoso. Mas convém que amemos igualmente os homens, mesmo aqueles que são meio tortos na vida.

Já disse o quanto aquilo me constrangeu. Deixei o escritório por alguns instantes para comer uma fruta. Passo pela sala, e Lolita estava esticada no chão da sala, curtindo o calor. Pipoca estava aboletada numa poltrona e sabe que está no lugar errado. Ao me ver, não tem dúvida: fica de barriga pra cima, com as patinhas traseiras no ar, as dianteiras dobradas, em sinal de submissão, e espera o que sabe que terá: um afago na barriga. A outra me segue até a cozinha à espera de um pedacinho de pêra, de mamão… Que tipo de gente espanca cachorro, Santo Deus!? Mas não me peçam para condescender com espancadores de homens.

Fala-se até em prisão para a mulher com base no Estatuto da Criança e do Adolescente. Bem, talvez seja o caso de verificar se tudo vai bem com ela e tal. Mas vamos devagar! A exposição da criança, da forma como está se dando, não me parece também coisa saudável. Mais: como deixar de considerar que o vídeo é uma óbvia invasão de privacidade?

Já publiquei aqui “Anedota Búlgara”, um poema de Drummond:
Era uma vez um czar naturalista
que caçava homens.
Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas,
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade

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Amemos os bichos!
Amemos os homens!
Todos são dignos do nosso afeto.

Mas só aos homens podemos dispensar compaixão e perdão!

Pipoca há alguns minutos: "Você não vai me tirar daqui, né?"

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