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Considerações sobre o racismo e Machado de Assis. Ou: O racismo de contestação ainda não suporta um preto bem-sucedido

Este polemista “de direita”, como diria Marcelo Rubens Paiva, já lembrou aqui algumas vezes que o Brasil é o país que torrou bem uns R$ 5 bilhões com a reparação às vítimas — e sobretudo às supostas vítimas — do regime militar, mas ainda é um dos países em que mais se torturam presos comuns […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 10h46 - Publicado em 14 set 2011, 20h28

Este polemista “de direita”, como diria Marcelo Rubens Paiva, já lembrou aqui algumas vezes que o Brasil é o país que torrou bem uns R$ 5 bilhões com a reparação às vítimas — e sobretudo às supostas vítimas — do regime militar, mas ainda é um dos países em que mais se torturam presos comuns no mundo. Acho que é esse aspecto da minha postura que Paiva e seus amigos não conseguem entender: eu não faço diferença entre vítimas com pedigree e sem pedigree. Eu acredito, de fato,  o tempo todo em quaisquer circunstâncias, na igualdade entre os homens. Mobilizam-se mundos e fundos para fazer uma tal “Comissão da Verdade”, que vai recontar a história em nome do estado — e é preciso ser obtuso ou dotado de má fé para não ver nisso um traço autoritário; verdade oficial??? —, mas não se consegue impedir a tortura do Maicon Uedinesdei da Silva na delegacia da esquina. Essa ainda é a sociedade dos fidalgos: de direita, de centro, de esquerda…

Vejam o caso do combate ao racismo. O Brasil é hoje o país onde essa causa assume os contornos mais histéricos. Fez-se política de estado, afrontando, é bom notar, a Constituição. É evidente que as cotas violam o princípio da igualdade perante a lei. Na prática, para que não se puna um negro porque negro, pune-se um branco porque branco. É um escândalo! É a racialização das políticas públicas e do estado, coisa de fascistas — ainda que de fascistas de esquerda (de fato, dada a história, o fascismo é de esquerda; de direita é o liberalismo, pombas!). Adiante.

Os embates sobre racismo costumam ser os mais interessantes. Há o racismo em que todos são vítimas: aquele que é discriminado e aquele que discrimina também. Ele nasce da falta de educação, de informação, de cultura humanística, de civilidade. Imersos na ignorância, os filhos são racistas porque os pais eram, os avôs idem… Leio sobre esses cretinos perigosos que raspam a cabeça e exibem símbolos nazistas e me pergunto: “O que sabe essa gente sobre essa miséria?” Nada! Isso não quer dizer que não devam ser combatidos e severamente punidos. Não há estado de direito se o indivíduo puder alegar ignorância da lei para explicar seus crimes.

Mas há outros racismos, mais sutis, que costumo classificar de “racismo de segundo grau”, porque “informado”. Um deles chama especialmente a minha atenção. Pode haver algo mais racista do que entender que um negro está obrigado a defender uma determinada pauta — as cotas raciais, por exemplo — só porque ele é negro? Pode haver algo de mais racista do que considerar que um determinado negro só conseguiu uma posição de destaque na sociedade ou na sua profissão só porque fez concessões ao “poder branco”, porque não teria sido contundente o bastante na defesa de sua “raça” (que raça não é!), porque fez o jogo do dominador? Quer dizer que alguém que nasça negro já nasce com uma pauta, com um conteúdo, com escolhas ideológicas feitas? Eis aí o racismo mais difícil de ser vencido porque ele se quer uma teoria de resistência e de contestação.

Participei de um evento, ao lado de colegas jornalistas, no Rio, por ocasião dos 63 anos do estado de Israel — raramente tão ameaçado como agora, diga-se. Um dos presentes me perguntou se a acusação de estupro que pesava contra um ex-presidente do país depunha contra a imagem dos judeus como um todo. Respondi, para espanto geral — inicialmente ao menos; depois ficou claro o que quis dizer — que até depunha a favor. Também os judeus têm o direito de ter seus doentes para tratá-los, de ter seus canalhas para puni-los, de ter seus imorais para repreendê-los. Esse povo não está obrigado a produzir só gênios  para compensar alguma culpa ancestral, alguma falha primeva. Invertendo uma sentença conhecida, digo que os judeus podem, e devem, ser diferentes sendo iguais. E isso vale para todos os povos, para todas as pessoas.

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Ora, quem não suporta que um negro possa ser um não-engajado na sua causa não reconhece o outro como aquilo que ele é antes de qualquer condição: indivíduo. Se o quer primeiro um negro para só então arbitrar sobre a sua moral e as suas escolhas, é óbvio que está praticando a mais asquerosa forma de discriminação racial — um racismo encoberto, algo envergonhado, mas não menos pernicioso do que aquele que é fruto da ignorância.

Atenção! Machado de Assis, o maior escritor brasileiro de todos os tempos, um gigante de verdade, inexplicável e inexplicado pela sociologia — nem que Roberto Schwarz passe os próximos 200 anos com o seu tatibitate marxista (santo Deus!) —, é objeto, em certos círculos, dessa “forma superior” de discriminação, que não é estranha à tese do nosso marxista progressista, diga-se. Tudo somado e subtraído, há quem queira que ele nunca foi negro o bastante. Acusam Machado de Assis, em suma, de ter sido um preto de alma branca, mal escondendo que, ao afirmá-lo, acabam atribuindo seu gigantesco talento a essa suposta alma branca. É um pensamento asqueroso, ainda que pretenda se apresentar sob a forma de tese combativa e anti-racista.

E, agora, finalmente entro na polêmica sobre o filmete publicitário da Caixa Econômica Federal, em que um Machado mais branco do que as asas de um cisne entra no banco para fazer o seu depósito na poupança. Segue abaixo. Volto em seguida.

[youtube=https://www.youtube.com/watch?v=10P8fZ5I1Wk&w=420&h=345]

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O filme pode não ser racista porquanto não promova a distinção de cor de pele (ou “raça”) como um valor, mas é evidente que viola um dado objetivo, conhecido: Machado era mestiço. Eis aí: este é um governo que tem uma secretaria de estado, com status de Ministério, só para lidar com questões raciais, mas que permite que aquilo vá ao ar. O que explica? É que a questão racial serve como instrumento de militância, entenderam? Ainda é um subproduto, gostem ou não, da teoria da luta de classes, que hoje se fragmentou nas várias “minorias”. Combate-se o racismo como uma “causa”, no puro proselitismo, mas, de fato, no teste da realidade, pouco importa o preto ou o mestiço que há.

Não estou entre aqueles que dão curso fácil às acusações de discriminação racial, não. Há, sim, quem faça uso oportunista da questão. Nesse caso, no entanto, pretos e mestiços têm uma razão particular para protestar (mas ninguém está obrigado a nada). É evidente que o embranquecimento de Machado concorre para a sua invisibilidade . Mas o protesto deve ser coletivo: a publicidade oficial frauda um dado da realidade. Se não há, e não há, razão para caracterizar um Carlos Drummond como mestiço — e, por isso mesmo, ninguém o faria —, deve haver alguma, ainda que seja apenas a ignorância, para que Machado pareça um alemão no filme da Caixa.

Ainda que seja apenas a ignorância, eis um motivo para um bom combate.

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