“Quem não deve não teme” é uma frase fascistóide
Em um de seus sermões, Padre Vieira faz uma digressão sobre os males e os remédios. Num dado momento, pergunta: “E quem remedeia os remédios?” Pois é… Quem? Para quem vê o mundo segundo a religião, a resposta é uma só: Deus. Mas os estados ocidentais são leigos. Ausente o Altíssimo, o remédio dos remédios […]
O pecado de um sacerdote é sempre mais grave do que o de um fiel. A razão é simples: ele existe para orientar. Seu descaminho conduz a descaminhos vários. O desvio de conduta de quem deve responder pelo arcabouço legal de uma sociedade é pior do que a transgressão do homem comum, de quem não é autoridade — e o motivo é análogo à especial fealdade do pecado do cura.
Eu jamais diria um “quem não deve não teme”, mesmo sendo apenas um jornalista — se quiserem chamar de “blogueiro”, não ligo. Mas, se o fizesse, não teria grande importância. Talvez não tivesse importância nenhuma, embora, creio, isso não fosse nada edificante aos meus leitores. Mas vá lá: eles são grandinhos, não? Sabem se defender, inclusive das minhas opiniões. Mas eu não decido destinos.
A diferença que existe entre “Quem não deve não teme” e “Quem deve teme” (alguns gramáticos gostam de um vírgula entre os verbos; sou contra, hehe…) é a mesma que existe entre as tiranias e as democracias.
Uma das formas usadas pelos regimes de força para se impor — além da violência física propriamente dita — é a disseminação do medo. Aqui vai entrar o concurso da gramática. Há duas orações em “Quem não deve não teme” — trata-se de um período composto. O sujeito da segunda (não teme) é a primeira (quem não deve). Este sujeito da gramática é também um sujeito político que se afirma por meio da negativa, do que não fez. No ambiente de suspeição, ele está tranqüilo porque, de fato, é o “não-sujeito”. Ou, pior ainda, “não dever” é uma condição que lhe é imanente — já que é próprio das tiranias separar os homens, por princípio, entre “os que devem” e os “que não devem”.
Já o “Quem deve teme” perde o sentido de uma sentença e de um norte moral para ser uma constatação referencial dos regimes onde vige o estado de direito. O sujeito da segunda oração (teme) é a primeira (quem deve). Há uma diferença abismal entre as duas perspectivas. Nesse caso, o sujeito “teme” porque sabe que “deve” — e, pois, ainda que contra a lei, afirmou-se positivamente. Ele não vive assombrado pelo que não sabe o que seja, a exemplo daquele outro. O que pode eventualmente persegui-lo é um código que ele sabe que transgrediu.
As implicações não são só essas, não. Há outras. Na sociedade do “Quem não deve não teme”, o indivíduo está convidado a provar permanentemente a sua inocência, dado que está sob a ameaça de que alguma acusação lhe caia sobre os ombros. Ainda que aconteça, nada devendo, ele se encarregará de provar que é inocente. Ocorre que, nas democracias, é o estado que tem de provar a sua culpa. Culpa que aquele “que deve” tem consciência de ter. E o que ele “teme”? Justamente ser confrontado com as provas dessa culpa — e cabe ao acusador apresentá-las.
Acredito, apelando a algum humor, que a procuradora, ao declarar o seu “quem não deve não teme”, não atentou para o fato de que o lema serve mais a Gengis Kahn do que a Karen Jeanette Khan. Ademais, acreditem: sem esse tipo de protagonismo, marcado por frases infelizes que apelam à inversão do ônus da prova, será bem mais fácil punir políticos, empresários e sindicalistas corruptos.
Ocorre que, dado o que se tem, a polícia e o Ministério Público, ao agir, entregam de bandeja ao investigado a peça da defesa. Às vezes, não se dão conta da lógica mais elementar. Ou como explicar que a procuradora tenha redigido uma extensa nota, contestando a decisão da desembargadora Cecília Mello e advogando a correção e independência do MP? Independência e correção não são também, por acaso, instrumentos que assistem a magistrada?
O Brasil não pode ser a sociedade do “quem não deve não teme”. Tem de ser a sociedade do “só teme quem deve”.