Por que é bobo vociferar contra um Jesus Trans ou um Jesus Gay?
A reinterpretação de ícones religiosos, prática tão antiga que já caiu na banalidade, não deveria ser levada a sério pelos conservadores
O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu foi ao palco ontem no centro de cultura e de acolhimento LGBT de São Paulo. Escrita pela inglesa Jo Clifford, a peça conta a história de um Jesus pós-moderno que volta ao mundo no corpo de um transexual. O espetáculo passaria despercebido – mais uma excentricidade dessa gente de teatro – não fosse a gritaria promovida por ativistas que estão doidos para reinstalar a censura e o puritanismo no Brasil. Logo no Brasil…
Não faz o menor sentido jogar pedras contra uma peça de teatro que, boa ou má, usa a linguagem artística para expressar diferentes formas de enxergar a realidade. Jesus é um ícone cultural tão poderoso que inevitavelmente passaria pelas mais controversas interpretações. Por exemplo: entendê-lo como um Che Guevara palestino virou lugar-comum por causa da Teologia da Libertação, um movimento nascido dentro da própria Igreja Católica.
Com a proliferação dos movimentos sociais, criou-se margem para a afirmação de que Cristo era negro, já que a Bíblia fala nos seus “pés cor-de-cobre”, e até mesmo de que era gay, pois beijava seus discípulos e os recebia em reuniões particulares. Na época d’O Código Da Vinci, livro e filme, pouco faltou para dizerem que Jesus era mulher. Segundo essa versão, de qualquer forma, Cristo viveu muito perto de uma, Maria de Magdala, a quem teria confiado os segredos mais profundos da sua doutrina.
Essa multiplicidade de interpretações é condizente com a nossa época, um período plural em que tudo é transformado em mercadoria de consumo subjetivo. Até há pouco monopolizada pela Igreja Católica, hoje a marca “Jesus” atende aos mais diversos segmentos no mercado de bens simbólicos. Qual deles é o verdadeiro? Todos e nenhum, dependendo o veredito das necessidades políticas e espirituais de cada fiel.
Afinal de contas, “pão ou pães, é questão de opiniães”, já dizia o Guimarães, que também gostava de rimar.
De uma coisa, porém, podemos ter certeza. Jesus podia ser tudo, menos modesto. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”, disse, ou disseram que disse, vá lá. Não é de admirar que o tenham pregado numa cruz.
P.S.: as tentativas bem ou malsucedidas de censurar O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu são crimes perpetrados contra a liberdade de expressão, ponto final, mas há uma pergunta feita pelos conservadores que deve ser levada em conta porque serve de termômetro para a responsabilidade de quem vive em democracia: quem teria colhões para montar uma peça chamada, por exemplo, O Alcorão Segundo Maomé, a Princesa do Paraíso?