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Erico Verissimo é um antídoto para a doença da polarização – parte II

O Tempo e o Vento possui mais de 2200 páginas e levou 15 anos para ser escrito

Por Maicon Tenfen Atualizado em 2 Maio 2018, 08h32 - Publicado em 2 Maio 2018, 08h25

(Continuação do post publicado aqui).

Erico Verissimo acreditava que poderia narrar a formação histórica do Rio Grande do Sul, com toda a sorte de intrigas e subtramas, num volume de aproximadamente 800 páginas. Mal imaginava que o projeto cresceria e se tornaria uma trilogia com mais de 2200 páginas que lhe consumiria 15 anos de dedicação. A parte inicial do trabalho foi realizada depois que retornou de uma temporada nos Estados Unidos. Isolou-se em seu escritório na Editora Globo e, apesar do barulho e dos contratempos cotidianos, escreveu sem parar.

O Continente, primeiro volume, veio a público em 1949. Livro de guerras, aventuras e peripécias heroicas, compreende o período mais primitivo e mítico de toda a obra. Começa por volta de 1745 e vai até o final do século XIX. Personagens inesquecíveis — alguns, como Ana Terra e o Capitão Rodrigo, foram incorporados pelo imaginário nacional — vivem seus dramas à frente de um conturbado e não muito detalhado pano de fundo histórico que vez ou outra e muito levemente surge como destaque da encenação. “Conturbado” porque Erico utilizou com correção o seu faro de romancista e soube escolher os episódios mais interessantes do ponto de vista ficcional, e “pouco detalhado” porque o romancista temia esquecer a trama e seus atores para bancar o antropólogo ou o analista político.

Nesse sentido, em vez de termos uma informação minuciosa sobre o massacre das missões jesuíticas no sul do Brasil, por exemplo, ficaremos com os obstáculos e os perigos por que passa Pedro Missioneiro. A mesma lógica vale para a colonização dos campos e a família Terra, para o Levante Farroupilha e Rodrigo Cambará, para a Guerra do Paraguai e Bolívar, para a Guerra Civil de 1893 e Licurgo, tudo isso em idas e vindas temporais tão bem articuladas que em momento algum o calhamaço cai no didatismo ou na monotonia.

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Muitos viram no livro um elogio das características que mais tarde resultariam no patriarcalismo dos estancieiros e dos caudilhos que comandaram o Rio Grande ao longo das décadas. Com efeito, mesmo personagens femininas fortes como Ana Terra e Bibiana, em sua necessidade de sobrevivência doméstica enquanto os homens saem a cavalo para guerrear, ajudam a justificar e ordenar um mundo predestinado à violência e à matança. Por outro lado, não se deve esquecer que O Continente, antes de ser um romance completo, é a tese que será contestada e destruída nos volumes subsequentes. Em O Tempo e o Vento, Erico Verissimo trabalha o aplauso e a crítica das oligarquias gaúchas dialeticamente. Não é à toa que O Retrato e O Arquipélago, respectivamente publicados em 1951 e 1962, perdem todo o fôlego épico, toda a ação e, sob pena de tornarem-se lentos, enfadonhos e excessivamente analíticos, todos os personagens carismáticos.

O Tempo e o Vento certamente é a única obra da literatura mundial que se desmistifica a si mesma. O terceiro volume é uma espécie de reescritura do primeiro, onde o épico e o aventuresco são substituídos por uma amargura crítica e quase introspectiva. Numa das ações mais ambiciosas das letras nacionais, estava o Rio Grande, e por metonímia todo o Brasil, lido e relido numa única obra e num mesmo golpe.

Conforme o próprio Erico confessaria mais tarde, houve momentos em que ficou profundamente enfastiado de trabalhar na sua trilogia histórica. Várias vezes admitiu que, depois da publicação de O Retrato, desviava-se do dever de escrever com a desculpa de tarefas aparentemente legítimas e inadiáveis. Um desses desvios levou-o à composição de Noite, a pequena novela que, classificada como uma espécie de narrativa alegórica e expressionista, destoou por inteiro do restante de seus escritos. Já na época de seu lançamento (1954), o autor acabou por reconhecê-la como a ovelha negra do seu rebanho.

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De fato, o choque causado por Noite em seus leitores usuais foi mais que incomensurável. O protagonista, que não tem nome e é identificado apenas como o Desconhecido, surge completamente desmemoriado nas ruas de uma grande cidade. Ao mesmo tempo em que percorre o labirinto urbano acompanhado por dois marginais que conheceu num bar, os meios de comunicação noticiam o assassinato recente de uma estranha mulher. Teria sido ele o culpado?

Parte da crítica, numa pobre interpretação freudiana, considerou Noite como a explosão dos demônios interiores do autor, demônios que irromperam cheios daquelas verdades cuidadosamente armazenadas nos subterrâneos da alma. Outros depreenderam da obra uma problematização da impessoalidade e da coisificação do ser na sociedade industrial. Seja como for, aquela amargura crítica e quase introspectiva que marcaria a segunda metade de O Tempo e o Vento aqui se manifesta com todos os gestos e caretas do exagero. Isolada ou equiparada ao resto de sua produção, Noite simboliza um dos momentos mais curiosos e inexplorados da obra de Erico Verissimo.

(Conclui amanhã).

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