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A Forma – ou A Bomba – da Água? Ou ainda: o PSOL ganhou o Oscar?

Num filme em que todos os homens heterossexuais são odiosos, não é de admirar que a heroína tenha transado com um peixe

Por Maicon Tenfen 5 mar 2018, 07h33

Escrita em 1921, Seis Personagens à Procura de um Autor é a obra máxima de Luigi Pirandello. O título é em si uma sinopse: meia-dúzia de criaturas fictícias tenta convencer um diretor de teatro a empregá-las na sua próxima peça. O diretor ralha com os visitantes e ordena que se retirem, mas aos poucos vai se deixando envolver por personagens que — então entendemos — foram abandonados pelo próprio autor. Um pai cheio de remorsos e uma mãe mergulhada em dores se veem às voltas com segredos que pouco a pouco serão revelados numa discussão entre os filhos e a enteada vingativa. O que começa como uma comédia do absurdo termina como uma tragédia eivada de dramas universais.

O que aconteceria se Pirandello estivesse vivo e resolvesse compor a sua obra-prima em 2018? Não é difícil imaginar a resposta diante da politização estéril das narrativas atuais. Entre as personagens que se apresentariam ao diretor, com certeza estaria uma portadora de necessidades especiais (mudez, por exemplo), uma mulher negra oprimida pelo marido, um gay na terceira idade e até um espião comunista que desistiu de comer criancinhas para se transformar em amante da natureza. Também é fácil imaginar a reação de Pirandello ao ouvir as súplicas de personagens que, se não foram abandonadas por dramaturgos de verdade, foram por autores de cartilhas civilizatórias que desejam construir um mundo melhor.

— Não posso usar todos vocês na peça — diria o escritor. — O sistema de cotas não combina com a arte.

— Ah, é? Então vamos denunciar o senhor nas redes sociais e mostrar ao mundo a sua personalidade autoritária.

— Olha, gente, não é nada pessoal, nem racial e muito menos político, mas vocês são certinhos demais, são previsíveis, não possuem densidade dramática, não dá pra contar uma boa história com estereótipos tão evidentes.

— É melhor tomar cuidado, senhor autor. O seu passado de Homem Branco Ocidental pode vir à tona a qualquer momento.

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É possível que Pirandello mudasse de ideia, não por medo de represálias, mas por perceber o nonsense e a comicidade da situação.

*****

Como todo contador de histórias, Guillermo Del Toro teve que se colocar no lugar de Pirandello. A diferença é que deu ouvidos aos correspondentes americanos do PSOL e contratou uma trupe de mocinhos e mocinhas entre os grupos de pressão que estão gritando por aí. Tudo ficou simples e didático em A Forma da Água: os “diferentes bonzinhos” de um lado e os “normais malvadinhos” do outro. O Oscar aclamou Del Toro como um gênio total, o que de fato é, mas do marketing e das relações públicas. Em vez de um filme, entregou um tratado de correção política para Me Too nenhum botar defeito.

— Quem não tiver carteirinha de sindicato minoritário não entra ou então que se contente com os papéis de vilão.

Ah, sim, os vilões, aí é que está a coisa. Num filme em que todos os homens – brancos ou negros – são odiosos, não é de admirar que a heroína tenha transado com um peixe. Aliás, ela e a criatura das águas formam o único casal que tem direito ao gozo. Todos os demais parecem condenados a uma eterna frustração, seja o homossexual idoso ou a faxineira negra, e a culpa, é claro, só pode ser dos heterossexuais que não lhes dão bola. (Fico imaginando o dia em que as pessoas, por se julgarem vítimas da sociedade, vão pedir ao Estado uma espécie de vale-carinho para suprir a falta de emoção em suas vidas).

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A cena da lanchonete é emblemática nesse sentido. Antes de repelir o homossexual que enfim se declara, vemos o garoto do balcão usar a retórica dos anos 60 para ofender e expulsar um casal de negros. O rapaz não seria vilão o bastante se apenas desse um chega-pra-lá no pretendente que estava a um passo do assédio. Foi preciso relacionar o personagem a uma barbaridade como o racismo para então associá-lo mais facilmente à homofobia. A desonestidade ideológica é flagrante. É como se todos os homens que dispensam o sexo homoafetivo fossem automaticamente machistas, fascistas e tudo o mais que existe de ruim no mundo.

A Forma da Água não questiona nenhum dos estereótipos que assolam a vida em comunidade. Ao contrário, vale-se deles, fortalecendo-os em sua condição de vítimas, para acrescentar um novo estereótipo à lista: o Homem Branco Ocidental como o culpado de todos os males. E ninguém melhor para representar esse grupo de opressores do que o Coronel Richard Strickland (a propósito, foi graças ao talento do ator Michael Shannon que o personagem não caiu num ridículo vexaminoso). Como em toda narrativa maniqueísta, é um vilão plano e previsível, perdido em conceitos religiosos confusos e doido para exterminar tudo que seja estranho ao modo de vida americano.

Ao contrário da heroína e da criatura das águas, que só precisam de um ovo cozido para se comunicar, Strickland não sente sabor na omelete que diariamente recebe da esposa. Tem um lindo casal de filhos, mas só o menino se aproxima dele (sugestão subliminar de pedofilia?). Em desrespeito a qualquer cartilha de disciplina militar, usa um bastão de choque fálico para — sem a menor necessidade — torturar a criatura e colocar-se perigosamente ao seu alcance. Na cena mais deslocada e inverossímil do filme, comete assédio contra a faxineira muda. De novo: ele não seria vilão o suficiente se não operasse todos os clichês de homem sujo e destruidor.

Mesmo que o filme tente se vender como um canto de louvor à diversidade, trai a si mesmo ao plagiar pela metade a animação Shrek — e não a peça de Paul Zindel, como estão dizendo por aí. A história do monstro e da faxineira deveria representar a vitória do amor entre os diferentes, mas na última cena descobrimos que o filme apenas reafirma a mentira preconceituosa que pretende criticar: os finais felizes só existem entre os iguais! Se é fácil imaginar o que Pirandello diria de sua peça 100 anos depois, não dá para prever o que Del Toro dirá do filme em 10 anos, quando ficar claro o oportunismo panfletário da sua bomba d’água.

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