Trump eleva temperatura política dos EUA (por Marcos Magalhães)
Clima de intolerância pode contaminar o mundo
A dois meses das eleições americanas, o mundo inteiro se põe a fazer cálculos políticos para os casos de uma vitória democrata ou de uma reedição do movimento que levou Donald Trump à Casa Branca em 2016. Da China à Alemanha, do México à Índia, líderes políticos, acadêmicos e jornalistas esboçam cenários para o mundo a partir de janeiro. Porque é disso que se trata: as eleições são decisivas para o futuro do planeta.
Existem aqueles que encaram com indiferença os resultados. Tanto faz, para eles, que vença um democrata ou um republicano. O poder americano seria sempre o mesmo, com todas as suas consequências. Existem os que se dedicam desde já a prever como serão as relações bilaterais de seus países com os Estados Unidos. E também os que interpretam a importância de cada aceno político na construção de uma nova ordem global.
É como se os analistas, cada um à sua maneira, estivessem atentos a uma espécie de sismógrafo político, capaz de identificar a intensidade das mudanças que chegarão a todo o mundo. Porque, de uma maneira ou de outra, elas chegarão. Seja com a vitória de Joe Biden ou com o retorno em grande estilo de Trump.
Mesmo antes das eleições, o sismógrafo identifica sinais do que vem por aí, seja qual for o resultado das urnas. E os sinais são preocupantes. Eles indicam a existência de uma grande falha geológica na sociedade americana. Uma falha que tende a se expandir à medida que se eleva a temperatura do debate político.
Ruas
É possível perceber esse movimento nas ruas das principais cidades norte-americanas. Foi assim em Portland, por exemplo, onde um homem foi morto durante conflitos entre simpatizantes de Trump, que desfilaram em seus caminhões pela cidade, e manifestantes contra o racismo.
Portland tem sido palco de manifestações desde o assassinato pela polícia do negro George Floyd, em Minneapolis, que motivou a criação do movimento Black Lives Matter. Durante a demonstração dos simpatizantes de Trump, no sábado, ocorreram pequenos choques com grupos opositores do governo. Até que se ouviu um tiro.
Morria ali um homem com um boné do grupo de extrema direita Patriot Prayer, baseado em Portland. Um grupo que, segundo sua página no Facebook, combate a corrupção e o que a direita americana chama de “big government”.
Poderia ter sido alguém do grupo de opositores, assim como, dessa vez, foi um militante do movimento que pretende manter Trump no comando do país. Na verdade, existe uma grande possibilidade de que outras mortes venham a ocorrer até novembro. Em um ambiente político tão radicalizado, qualquer pequeno confronto pode ser fatal.
Tom
Para ficar mais quatro anos na Casa Branca, o atual presidente parece disposto a elevar o tom de seu discurso. Ele deixou clara a intenção em seu pronunciamento ao final da convenção do Partido Republicano, que o indicou para disputar um novo mandato.
Segundo Trump, as eleições deste ano serão as “mais importantes da história”, porque nunca os eleitores se viram diante de uma escolha tão nítida entre duas propostas políticas. O presidente recorreu então ao medo como arma política.
“Essa eleição vai decidir se nós salvamos o sonho americano ou se permitimos que uma agenda socialista destrua nosso destino”, disse Trump. “E essa eleição vai decidir se nós vamos defender o estilo de vida americano, ou se nós permitiremos que um movimento radical o destrua completamente”.
Para garantir o voto conservador, o presidente prometeu ser duro contra o crime. Ele criticou as propostas democratas de taxar os mais ricos e estimular fontes renováveis de energia. “A agenda de Joe Biden é made in China, a minha é made in USA”, comparou.
“Biden prometeu abolir a produção de petróleo, carvão e gás, causando prejuízo às economias de Pensilvânia, Ohio, Texas, Dakota do Norte, Oklahoma, Colorado e Novo México”, prosseguiu. “Milhões de empregos serão perdidos, e os preços da energia vão disparar”, alertou.
Diferenças
As diferenças entre as propostas de Trump e Biden são, de fato, notáveis. E o presidente tem, de fato, razão ao ressaltar a importância da escolha dos eleitores em novembro. O que está em jogo, porém, é algo mais profundo.
Quando apresenta suas propostas, Trump dá prosseguimento a uma longa tradição de transparência entre os candidatos à Casa Branca. Quando alerta os eleitores para aquilo que considera errado nas propostas dos adversários, pode também alimentar um saudável – e igualmente tradicional – debate entre duas diferentes propostas.
Ao elevar demasiadamente o tom, porém, Trump alimenta um clima de radicalização que já divide profundamente os americanos. Ao retratar o moderado Joe Biden como ponta de lança de um movimento radical de esquerda, ele reveste as eleições de um tom quase apocalíptico. Tudo por mais quatro anos de mandato.
A crescente radicalização tem preocupado principalmente analistas da Europa, que temem a contaminação dos debates internacionais por esse clima de intolerância. Em recente artigo para o El Mundo, de Madri, o ex-ministro alemão de Relações Exteriores Sigmar Gabriel usou como exemplo de suas preocupações imagens de militantes de extrema direita fortemente armados diante de manifestações pacíficas realizadas recentemente.
“Essa versão dos Estados Unidos, cujas divisões internas têm se derramado cada vez mais para a política externa, talvez seja a maior ameaça à segurança que o resto do mundo enfrenta na atualidade”, escreveu Gabriel. “Em uma época de riscos crescentes para o planeta, desde pandemias e mudança climática à proliferação de armas nucleares e à reafirmação chinesa e russa, a implosão política dos Estados Unidos multiplicaria ao máximo as ameaças”.
É cada vez mais prudente, portanto, manter um olho no sismógrafo que detecta a intensidade dos movimentos no subsolo político dos Estados Unidos. Mesmo pequenos abalos sísmicos na maior potência mundial podem ter reflexos em todo o planeta.
Marcos Magalhães. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018. ⠀⠀