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Sonhos sem resposta

Ru Anita, a última falante no Brasil da língua Arutani, tem 75 anos, mora em Roraima às margens do rio Urarikaá e sonha com os que já não lhe respondem

Por Ricardo Noblat Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 5 jan 2018, 19h41 - Publicado em 5 jan 2018, 10h00
Ru Anita, Arutani
Ru Anita, Arutani (Thiago Chacon/Arquivo pessoal)

Há menos de 30 dias, uma preciosidade linguística foi descoberta pelo professor adjunto do Instituto de Letras da Universidade de Brasília, Thiago Costa Chacon, 32 anos, e sua equipe de pesquisadores, na comunidade indígena dos Ianomâmis em Saúba, às margens do rio Urarikaá, a 327 quilômetros de distância de Boa Vista, capital de Roraima.

Ru Anita Xiriana Ianomâmi, 75 anos de idade, é a última falante no Brasil da língua Arutani, povo que oficialmente deixou de existir por aqui desde os anos 30 do século passado quando migrou para a Venezuela fugindo de guerras e epidemias. Informações a serem confirmadas dão conta de que ainda possa existir um grupo isolado de Arutanis na Amazônia.

Quando sente falta de falar sua língua, Ru Anita caminha 50 quilômetros, atravessa a fronteira com a Venezuela, e vai à procura de quem possa entendê-la. Nunca encontra, embora tenha ouvido dizer que há por ali duas índias mais idosas do que ela, de nomes Xapa e Apoto, que talvez ainda falem Arutani. Encontra parentes, mas com eles fala Xiriana, outra língua.

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Nascida na Venezuela, Ru Anita Xiriana Ianomâmi ganhou o nome pelo qual é conhecida quando já era adulta. Seu nome verdadeiro é Kari. Ao funcionário brasileiro que expediu sua carteira de identidade, ela se apresentou como Juanita. Ele anotou: Ru Anita. Xiriana se refere à etnia da mãe, que era Arutani. Ianomâmi, à etnia do pai, que era xiriano.

Viúva de Ramón, um índio da tribo Sanumá com quem casou por insistência da sua família uma vez que ele tinha um motor de popa e sabia pilotá-lo, Ru Anita foi mãe de cinco filhos, mas só criou dois, um homem e uma mulher. Os outros morreram ao nascer. Trina, a filha, mora na Venezuela. O filho Resu, corruptela de Jesus em espanhol, mora no Brasil.

Ru Anita vive em Saúba, na casa do filho. Cozinha, cuida de quatro netos, planta e colhe mandioca na roça da família. Seus vizinhos são cerca de 100 indígenas de varias etnias. Todos se dizem Xirianos e falam Xiriano, língua que Ru Anita também fala. Ela não fala português. Mas conhece o significado de algumas palavras como “farinha” e “peixe”. Dá para o gasto.

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Saúba
Comunidade de Saúba onde mora Ru Anita (Thiago Chacon/Arquivo pessoal)

Os Xirianos, segundo o censo de 2010 do IBGE, são pouco mais de 700 de um total de quase 900 mil índios de 305 etnias que falam 270 línguas. Estudo publicado em 1993 pelo professor Aryon Rodrigues, da Universidade de Brasília, estima em 1.078 o número de línguas indígenas faladas no Brasil nos primórdios da colonização portuguesa.

De acordo com a Unesco, há 2.464 línguas sob ameaça de extinção no mundo, 190 delas no Brasil. Entre as línguas ameaçadas, 577 estão em situação de ameaça crítica – falantes idosos, que usam a língua parcialmente. A NatGeo Learning (braço de pesquisas da National Geographic) calcula que uma língua é extinta no mundo a cada 14 dias.

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Há uma notável similaridade entre a biologia e as línguas. Quem notou isso foi Charles Darwin, o famoso naturalista inglês autor do livro “A Origem das Espécies”. Em outro livro (“The Descent of Man”), Darwin diz que “a formação das diferentes línguas e das diferentes espécies” são muito similares, ou seja, ambas acontecem através de “um processo gradual”.

Ou seja: línguas e espécies nascem e morrem do mesmo jeito. Esse ponto é interessante porque existe todo um movimento para evitar a extinção de espécies no mundo biológico sob a alegação correta de que a extinção de uma espécie significa a perda de diversidade no planeta. Ora, a morte de uma língua é também a perda definitiva da diversidade no planeta.

Por que a preservação de uma língua, ou da diversidade linguística, é algo positivo? Por razões práticas (assim como a diversidade botânica de uma região é relevante para a descoberta da cura de uma doença). E por razões éticas e culturais (a perda da língua é a perda da história de uma comunidade e seu patrimônio).

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Sem esquecer as razões científicas (o estudo de línguas diferentes pode revelar novas articulações de som e de construções gramaticais). Qual a diferença entre uma língua e um dialeto? Ou, dito de outro modo, entre o português e a língua indígena que só Ru Anita sabe falar e que deixará de existir tão logo ela morra?

O sócio-linguista Max Weinreich fez fama com uma resposta engenhosa: “Uma língua é um dialeto com um exército e uma marinha”. Quer dizer: língua tem poder, estado, exército, bandeira nacional. Os dialetos, não. É por isso que se fala das “línguas europeias” e dos “dialetos africanos”. O Arutani da nossa última falante já teve algum poder. Não tem mais. Triste.

Thiago
Thiago Chacon no trabalho comunitário em Saúba (Thiago Chacon/Arquivo pessoal)

Foi por querer resgatar parte da história dos Arutanis, e não só compreender sua língua, que o professor Chacon desembarcou em Saúba no dia 30 de janeiro do ano passado atrás de Ru Anita. Ela estava na Venezuela há dois meses em visita à filha, Trina. Saúba tem uma escola até a quarta série, um Polo Base de Saúde e uma pista de pouso com apenas 450 metros. Ali, o rio Urarikaá é bem mais raso.

A primeira vez que Chacon ouviu falar de Ru Anita foi em 2011 quando visitou os Xirianas na companhia do linguista italiano Ernesto Migliazza, que morou no Brasil entre os anos 50 e 70. Migliazza escreveu um dicionário da língua Xiriana. Na Venezuela, onde também esteve, gravou em áudio uma série de palavras e de frases faladas em Arutani.

De posse de uma cópia da gravação, e de todas as informações que pode reunir sobre os Arutanis e sua língua, Chacon finalmente encontrou Ru Anita em dezembro passado, em Boa Vista. Foram duas semanas de entrevistas diárias. Ele falava em português. Colaboradores traduziam para Xiriana. E Ru Anita respondia em Arutani.

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Por vezes, ela tratou Chacon como “makoamá” (meu filho). E pediu que a chamasse de “anáy” (mamãe). No fim das entrevistas, Ru Anita repetia: “Makorokopsa usiri kani” (minha perna já está doendo). À falta de outros falantes de Arutani, Chacon não sabe dizer se ela é capaz de dialogar em sua língua de origem. Mas é fluente e fala com segurança.

Sabe também que Ru Anita, em Saúba, fala em Arutani se quer rir dos outros ou se bebe um pouco mais. Sonha somente em Xiriana. Se fala durante o sono é em Xiriana. E quando sonha com pessoas de antigamente que falavam Arutani, elas não dizem nada.

Ru Anita em trabalho
Ru Anita (sentada), seus netos, Resú (seu filho de Azul), Sueldo (pesquisador indígena) (Thiago Chacon/Arquivo pessoal)
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