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Simplesmente Machado de Assis (por Ruy Fabiano)

Militância racial

Por Ruy Fabiano
Atualizado em 18 nov 2020, 19h57 - Publicado em 21 set 2020, 12h00

A tentativa de associar Machado de Assis a questões de militância racial só faz sentido para quem não conhece nem sua vida, nem sua obra. Ambas o negam. Vejamos.

O suplemento Expresso Ilustrada, da Folha de S. Paulo, em matéria de 11 de junho deste ano, ao tratar do sucesso editorial da mais recente tradução de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, nos Estados Unidos, informa que movimentos raciais brasileiros “lutam para lembrar que ele (Machado) era um escritor negro”.

Afirma ainda que as fotos de Machado, que o mostram nas diversas fases de sua vida, desde a juventude até a velhice, não dariam essa impressão (de negritude) – e de fato não dão – em face de truques de iluminação, que teriam provocado o clareamento.

Aos fatos.

Machado era filho de Francisco José de Assis, pintor e dourador, descrito por um dos seus mais minuciosos biógrafos (Raimundo Magalhães Junior) como “pardo forro” – isto é, mulato liberto – e de Maria Leopoldina Machado da Câmara, portuguesa, nascida na Ilha dos Açores, e descrita como “ilhoa branca”.

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Dessa conjunção – de um pardo com uma branca -, só poderia nascer um mestiço. E mestiço era Machado de Assis.

E não se trata apenas de truques de iluminação, bem limitados nessa época, convenhamos. Basta ver as fotos de sua juventude, em que exibe vasta cabeleira crespa, típica dos mestiços.

A questão central, porém, não é essa, já que não é a condição étnica que define um grande artista. O problema é a tentativa de reescrever a história, no sentido de adaptá-la a causas políticas do presente. Trata-se de delito contra a memória.

Para sustentar a versão do Machado negro, é preciso modificar a origem açoriana de sua mãe, tornando-a negra também. Sua vinda para o Brasil decorreu de campanhas que o governo de dom João VI fez para estimular a migração de portugueses para o Brasil. Mas alguns chegam a sustentar que a mãe de Machado teria vindo para o Brasil num navio negreiro. Ao que se saiba, a Ilha dos Açores não era (nunca foi) rota daquelas embarcações.

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Não apenas os biógrafos de Machado sempre o mencionaram como mestiço/mulato – e não como negro -, mas sobretudo os seus contemporâneos. E ele não era o único intelectual de prestígio com esse perfil étnico. É interessante notar que alguns dos maiores intelectuais brasileiros de então, em plena vigência da escravidão, eram mestiços, de origem tão pobre quanto a de Machado.

Entre outros, Castro Alves, Casemiro de Abreu, Joaquim Manuel de Macedo, Gonçalves Dias, Cruz e Sousa, José do Patrocínio.

Ainda ao tempo de dom João VI, no início do século XIX, quando nenhuma das leis que buscavam atenuar sem extinguir a escravidão havia sido concebida, o principal músico da corte – compositor e regente – era o padre José Maurício Nunes Garcia, de etnia parda, que, além de artista notável, era um intelectual de formação erudita. Pouco mais se sabe sobre ele.

A academia brasileira ainda deve um estudo no sentido de esclarecer este contraste que pontua aquele período histórico: como, em meio à abjeção da escravidão – e abjeção no sentido mais duro e profundo da palavra -, havia (houve) espaço para a ascensão de mestiços ao topo da vida intelectual do país. Não houve nada parecido em nenhum outro país escravagista. Basta ver os EUA.

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A mestiçagem, na escala em que se deu no Brasil, não se reproduziu em nenhuma outra colônia europeia.

Para os adeptos de teorias raciais puras – e que não eram poucos, na Europa e no Brasil também -, isso era ruim; para outros (e aí me incluo), é um capital civilizacional.

Mas vamos à obra de Machado. As influências que recebeu foram múltiplas, da Bíblia a Shakespeare, passando por França, Alemanha, Portugal, Espanha, Grécia, Roma, escolásticos, patrísticos, hereges, agnósticos etc. Soube degluti-los e transmutá-los na mais fina prosa, pondo em prática, muitas décadas antes do advento dos modernistas, o princípio da antropofagia cultural.

Não houve influência de uma cultura literária africana por uma razão muito simples: os africanos que para cá vieram era iletrados; além disso, não provinham de uma mesma nação e nem sequer falavam a mesma língua. Não podiam, pois, produzir literatura.

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Mas isso não quer dizer que não tenham marcado presença em diversos outros setores da vida brasileira, da gastronomia à música, passando por religião e costumes, fundindo-os com a cultura indígena e europeia vigentes. No Brasil, tudo se mistura; tudo se misturou.

Machado, a seu modo – e de maneira bem mais eficaz que a militância da época -, abraçou a causa abolicionista. Com sua obra de extração superior – e que o mundo agora começa a descobrir -, era (é) a prova viva de que as teses de supremacia racial branca (ou de qualquer outra procedência) são furadas. Furadíssimas.

Sabe-se também – e isso consta de algumas das biografias que continua merecendo -, que, como burocrata do Ministério da Agricultura, chamado a dar parecer em questões de conflitos entre escravos e proprietários, dava razão sempre aos escravos. Sempre. Os documentos estão acessíveis para quem duvidar.

A propósito, o mesmo Raimundo Magalhães Junior escreveu um livro sobre “Machado de Assis, Funcionário Público”.

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Mas a contribuição de Machado à causa abolicionista não se esgotava aí. Astrojildo Pereira, crítico literário e fundador do Partido Comunista Brasileiro, em brilhante ensaio – “O Romancista do Segundo Reinado”[3] -, mostra que a grande contribuição de Machado ao Brasil foi política, ao expor as mazelas de seu tempo, em que a escravidão pontificava como o mal maior.

A militância, no entanto, só reconhece adesão à causa quando revestida da ruidosa coreografia das passeatas.

Machado não se enquadra naquele figurino. Mas, em crônica publicada dias depois da sanção da Lei Áurea, confessou que ficou tão eufórico que, contrariando sua natureza, foi às ruas celebrar com o povo. Mas o legado maior que deixa aos que confundem etnia com raça – e ainda duvidam de que a única raça existente é a humana – é demonstrar que estão apenas mal informados. Só isso.


[1] Vida e Obra de Machado de Assis (4 volumes – Ed. Civilização Brasileira,1981 – p.8 e 9, v. 1) – Raimundo Magalhães Junior

[2] Machado de Assis Funcionário Público (no Império e na República) – Raimundo Magalhães Junior – Ministério da Viação e Obras Públicas – Serviço de Documentação (1958)

[3] Interpretações – Astrojildo Pereira – Ed. Casa do Estudante, Rio de Janeiro, 1944

 

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