Imaginem a aflição de um náufrago à procura de uma tábua de salvação. O desespero de famílias que perdem entes queridos nesses dias pandêmicos. Ou a angústia dos desastres ambientais como o de Brumadinho, Minas Gerais, que deixou um rastro de destruição e mortes.
Vivemos momentos de aflição e angústia. A ansiedade paralisa nossos projetos e injeta incerteza e medo. Por mais planejada que seja, a pessoa se junta ao gigantesco cordão dos desvalidos que se sentem perdidos no meio do furacão.
A resiliência e a coragem de enfrentar os mais terríveis males fazem parte da sobrevivência humana, fato que empurra muita gente para a arena de combate em defesa de bem-estar. Mas esse vírus acaba atormentando nosso espírito. Na vida de uns, produz profunda alteração e em outros provoca o reordenamento do cotidiano.
Por mais que quadros experimentados na arte de enfrentar desafios acreditem que pouco mudará em suas vidas, o amanhã será outro. O trabalho assume nova modelagem, com o home office, a simplificação da papelada, o redimensionamento de budgets, a busca pela inovação, o uso da internet, enfim, as redes sociais como extensões de nosso cérebro.
Mudanças de ordem material terão infinitamente menor impacto que mudanças na esfera espiritual. A começar pelo conceito de tempo, morte e vida. Sêneca (4.aC – 65) já pregava: “Não é curto o tempo que temos, mas dele muito perdemos. A vida é suficientemente longa e com generosidade nos foi dada para a realização das maiores coisas, se a empregamos bem. Mas, quando ela se esvai no luxo e na indiferença, quando não a empregamos em nada de bom, então, finalmente constrangidos pela fatalidade, sentimos que já passou por nós sem que tivéssemos percebido. O fato é que não recebemos uma vida breve, mas a fazemos, nem somos dela carentes, mas esbanjadores”.
A cada dia de recordes de mortos, constatamos que a eternidade está ali a um palmo. Os sonhos fenecem, sob a sensação de que temos de reconstituir modelos, processos e atitudes. Mas uma leve brisa de esperança invade nosso ser. Quem sabe poderemos continuar a saborear as coisas boas da vida?
A realidade se escancara. Se nossa estética haverá de absorver máscaras com seu cromatismo, no plano espiritual o facho das mudanças será luminoso. A solidariedade, por exemplo, germinará na seara dos nossos valores. Viveremos com mais intensidade a virtude da amizade, cola da fraternidade. Sabemos que o cotidiano forma oceanos entre amigos, desmanchando laços e esgarçando o tecido social.
Por isso, teremos de batalhar para que o distanciamento não maltrate nossa integração, fazendo retomar caminhos encruzilhados, evitando a competitividade leonina do presente. Viver sob intenso sufoco corrói a humanidade que nos habita.
Haveremos de recolocar a vida no mais alto pedestal dos valores. Hoje, de tanto ouvirmos a numerologia da morte, este ato final torna-se banalizado, como se viver e morrer não fizessem diferença. Ora, a vida é um maior dom que Deus nos deu. Podemos até voltar a ser competidores e ambiciosos, sem esquecer jamais nossa identidade humana. Pinço Confúcio: “a humanidade é mais essencial para o povo do que água e fogo. Vi homens perderem sua vida por se entregarem à água ou ao fogo; nunca vi alguém perder a vida por se entregar à humanidade”.
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Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político