Assine VEJA por R$2,00/semana
Imagem Blog

Noblat Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO

Por Coluna
O primeiro blog brasileiro com notícias e comentários diários sobre o que acontece na política. No ar desde 2004. Por Ricardo Noblat. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
Continua após publicidade

Pensando o impensável (por Bolívar Lamounier)

Resultado mais provável da ruptura da ordem parece-me ser um longo período de anarquia

Por Bolívar Lamounier
Atualizado em 30 jul 2020, 18h51 - Publicado em 20 jun 2020, 12h00

Um momento histórico que eu gostaria de ter presenciado aconteceu no dia 1.º de novembro de 1944: um breve encontro entre o ministro da Justiça, Marcondes Filho, e o general Eurico Dutra. O relato está no ótimo livro de Paulo Brandi Vargas: da Vida para a História (Zahar, 1985, pág. 178).

Desde a entrada do Brasil na guerra contra o fascismo, Getúlio pressentia que não conseguiria manter sua ditadura. Em 1943, o Manifesto dos Mineiros desafiou a censura e escancarou o debate sobre a redemocratização. A presença da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália, com apoio dos Estados Unidos, apontava para um ponto sem retorno. Nos meses seguintes, a pressão contra Getúlio alastrou-se rapidamente nas Forças Armadas. No final de outubro os generais Góes Monteiro e Eurico Dutra procuraram-no para insistirem na convocação de eleições. Getúlio aquiescia sem aquiescer. Cogitava de transitar para um regime híbrido, cujo comando permanecesse em suas mãos. Foi nessa altura que se deu o encontro de Marcondes Filho com o general Eurico Dutra.

O ministro havia rascunhado um projeto de lei eleitoral de teor corporativista, ou seja, baseado na representação por categorias profissionais, formato característico da tradição fascista. Foi quando, respondendo a Marcondes Filho, Eurico Dutra disse-lhe, curto e grosso: “Não é isso, não, dr. Marcondes, é eleição mesmo…”.

O referido momento parece-me assinalar com clareza a opção das Forças Armadas por uma identidade propriamente de Estado, impessoal, baseada na hierarquia e na disciplina, com a consequente rejeição do modelo de uma guarda pretoriana, ou seja, de uma milícia a serviço de um caudilho qualquer.

Continua após a publicidade

Mas tal modelo não era isento de problemas. Nos anos 30, sob a decisiva influência do general Góes Monteiro, ganhou corpo o modelo de uma organização tutelar, destinada não somente à defesa externa do País, mas legitimada para também atuar sponte sua no plano interno.

Os apontamentos acima ajudam a compreender o artigo 142 da Constituição de 1988, que alguns juristas chegam a interpretar até mesmo como uma autorização para as Forças Armadas atuarem como um Poder Moderador, dirimindo impasses entre os três Poderes. Não chego a tanto, mas, de certa forma, vou além, pois, no trecho a seguir, tal artigo me parece virtualmente ininterpretável: “…(as Forças Armadas) destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. O trecho grifado admite a esdrúxula hipótese de as Forças Armadas – no tocante à manutenção da lei e da ordem no plano interno – serem convocadas por dois ou até pelos três Poderes ao mesmo tempo. Considerando, entretanto, que o Supremo Tribunal Federal (STF) é o guardião da Constituição, instância última, portanto, da legitimidade política, cabe a ele esclarecer quando e em que termos as Forças podem ser convocadas – uma rima que em nada melhora o soneto.

A questão acima suscitada parece-me assumir contornos graves no presente momento, visto que agora não se trata de um imbróglio constitucional em abstrato, mas de uma conjuntura que muitos têm descrito como uma “tempestade perfeita”: em meio a uma terrível epidemia e a uma crise econômica sem precedentes, temos tido frequentes atritos entre os Poderes e um presidente da República pouco propenso a observar os limites e a liturgia do cargo que ocupa. Como se não bastasse, as Forças Armadas assumiram uma presença excessiva no Executivo, emprestando-lhe, por conseguinte, uma legitimidade que cedo ou tarde reduzirá a estima em que são tidas pela sociedade brasileira.

Continua após a publicidade

Acrescente-se que o protagonismo apaziguador do Legislativo esbarra em severos limites no presente momento, uma vez que a composição do Congresso Nacional ainda deixa a desejar, não obstante as reformas que se tem tentado fazer.

Por último, mas não menos importante, é preciso levar em conta o clima de radicalização, acentuado a partir das eleições de 2018, e os frequentes apelos que certos setores têm feito no sentido não só de tumultuar, mas efetivamente de solapar o regime democrático, exigindo alguma forma de intervenção militar. Um ponto fundamental que tais setores não parecem compreender é que o Brasil de 2020 é muito diferente do de 1964. Naquele ano, bastou às Forças Armadas prender umas poucas centenas de pessoas para assumirem o controle do País. Hoje a população brasileira é muito maior, está concentrada em grandes cidades e é muito mais diversificada, politizada e atenta. Mercê dos meios eletrônicos de comunicação, consegue se mobilizar com extrema facilidade. Tais mudanças não necessariamente conferem vantagem a algum dos grupos que se digladiem num hipotético confronto, até porque o resultado mais provável de qualquer ruptura da ordem parece-me ser um prolongado período de anarquia, ao fim da qual tudo estará mais ou menos na mesma, só que muito pior.

 

Continua após a publicidade

Bolívar Lamounier é cientista político. Esse artigo foi transcrito de O Estado de S. Paulo, 20/6/2020

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.