Os perigos do Natal (por André Gustavo Stumpf)
No governo Bolsonaro não há momentos de calmaria
Natal é tempo perigoso. É um dos dias menos movimentados do ano. Não há notícia, a não ser que ocorra algum desastre maior, uma queda de avião ou a morte de personalidade.
Fazer jornal neste dia é ainda mais complicado porque jornalistas, gráficos e funcionários também comemoram o Natal. Todos querem sair logo e correr para casa. Isso significa concluir a primeira página no meio da tarde. É difícil achar a manchete ou produzir o editorial.
Estava na posição de fechar o jornal naquele 24 de dezembro de muitos anos atrás. Nenhum assunto merecia o editorial. Decidi escrever sobre o Natal.
Parece incrível, mas a história revela que a data não tem nada a ver com o nascimento de Jesus. Os romanos aproveitaram importante festa pagã realizada por volta do dia 25 de dezembro e cristianizaram a data, comemorando o nascimento de Jesus pela primeira vez no ano 354. Era a festa pagã, chamada Natalis Solis Invicti (“nascimento do sol invencível”), cujas comemorações aconteciam durante o solstício de inverno, entre os dias 22 e 25 de dezembro.
A origem da data é essa, mas o nascimento verdadeiro é dúvida. Na Bíblia, o evangelista Lucas afirma que Jesus nasceu na época de um grande recenseamento, que obrigava as pessoas a saírem do campo e irem às cidades se alistar. Em dezembro, os invernos na Cisjordânia são rigorosos. Por causa do frio, é difícil imaginar o menino nascendo numa estrebaria naquele período.
É provável que o nascimento tenha ocorrido entre março e outubro, quando o clima no Oriente Médio é mais ameno. A Igreja do Ocidente escolheu oficialmente a data de 25 de dezembro em meados do quarto século depois de Cristo. O objetivo da escolha era fazer coincidir o nascimento de Jesus com as festividades do solstício de inverno, celebradas há séculos pelos povos europeus.
Foi sobre essa história que escrevi o editorial. Modéstia à parte, ficou direito. Dia seguinte recebi um telefonema do proprietário do jornal. Ele perguntou quem tinha escrito o editorial. Respondi que era de minha responsabilidade. Ele me disse: muito bem escrito. Parabéns. Mas no meu jornal Cristo nasceu no dia 25 de dezembro e não há essa história de gregos, romanos e natalis solis invicti. Cristo nasceu no Natal. Entendeu?
Aprendi, de maneira meio dramática, que a realidade as vezes se sobrepõe às nossas melhores intenções.
Lembrei da história porque estamos na época do Natal. No governo Bolsonaro não há momentos de calmaria. Tudo é crise. Quando ele não provoca, os filhos o fazem com muita competência.
Nos últimos dias, contudo, o barulho foi menor. O presidente afinal reconheceu que Joe Biden venceu a eleição para presidência dos Estados Unidos. Ele estava sendo mal informado pelo embaixador do Brasil em Washington, Nestor Foster, que é um bom conhecedor de vinhos, mas não parece entender nada de eleições norte-americanas.
O plenário do Senado rejeitou a indicação do embaixador Fabio Mendes Marzano para ocupar posição de delegado permanente do Brasil na ONU, em Genebra, na Suíça. Rejeição indiscutível: 37 votos contrários e apenas nove favoráveis.
Ocorre que na sabatina da Comissão de Relações Exteriores o Embaixador se recusou a responder pergunta da senadora Kátia Abreu, representante do agronegócio. Ela partiu para o ataque e disse que a nomeação do diplomata ‘‘envergonhava o Itamaraty, o Senado e o Brasil’’. Os diplomatas da turma do chanceler Ernesto Araújo aprenderam que não se brinca com o pessoal do agronegócio no Congresso. Eles falam de bilhões de dólares com a maior naturalidade.
Mais ainda: o presidente Bolsonaro e seu ministro da Saúde fizeram o anúncio oficial do plano de vacinação no Brasil. O presidente fez discurso moderado, discreto e passou ao largo de suas questões com João Dória.
A vacina chinesa do Butantan, em São Paulo, será destinada a vacinar brasileiros. Aliás, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que herdou o pragmatismo do avô, afirmou que é mais barato vacinar a população do que criar planos emergenciais para levar auxílio à população. É óbvio. Mas a tragédia do óbvio é não ser percebido.
Rodrigo Maia afirmou que não colocou em votação a Medida Provisória, que autorizava o 13º salário para os beneficiários do bolsa família porque a área econômica assim solicitou. Não há dinheiro. Ele disse, na tribuna, que Bolsonaro é mentiroso. O presidente calou a boca e foi pescar em Santa Catarina. Vez por outra, a realidade aparece e se impõe de maneira dramática, porém definitiva.
São os perigos do Natal.
André Gustavo Stumpf escreve no Capital Político. Formado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), onde lecionou Jornalismo por uma década. Foi repórter e chefe da sucursal de Brasília da Veja, nos anos setenta. Participou do grupo que criou a Isto É, da qual foi chefe da sucursal de Brasília. Trabalhou nos dois jornais de Brasília, foi diretor da TV Brasília e diretor de Jornalismo do Diário de Pernambuco, no Recife. Durante a Constituinte de 88, foi coordenador de política do Jornal do Brasil. Em 1984, em Washington, Estados Unidos, obteve o título de Master em Políticas Públicas (Master of International Public Policy) com especialização política na América Latina, da School of Advanced International Studies (SAIS). Atualmente escreve no Correio Braziliense. ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀ ⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀