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Por Coluna
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O tratado da mentira ou como Pinóquio foi superado (Por Antônio Cláudio)

Não deve haver quem diga ao presidente o que deveria ouvir em prol de seu governo e do Brasil

Por Antônio Cláudio Mariz de Oliveira
Atualizado em 18 nov 2020, 19h55 - Publicado em 7 out 2020, 13h00

Nós sabemos que a política, pela voz de seus agentes, não é o melhor veículo da verdade. A fidelidade à realidade não se apresenta como sua característica mais marcante. Assim é, sempre foi e será.

No entanto, existem limites claros e bem definidos. Há uma ética também no campo da mentira. Aquele que em seu nome infringe regras comezinhas da ética geral e da própria política não pode usar a política como escudo de proteção.

É mais ou menos como a isenção penal dada pela lei ao advogado que pratica os crimes de injúria ou de difamação, na discussão da causa; ao crítico literário que ofende numa crítica literária ou científica; ou ao funcionário público que fornece uma informação ou apreciação ofensiva no cumprimento de um dever de ofício.

Há nesses casos, também, fronteiras que, se ultrapassadas, obrigam ou permitem a punição pelo cometimento de crimes contra a honra. As ofensas do advogado devem estar em sintonia com a causa e com a necessidade para a sua discussão. A crítica literária não fica isenta de censura penal se extrapola o seu campo natural e denota intenção meramente ofensiva. Quanto ao agente público, o mesmo se dá, pois se as apreciações mostrarem o escopo de ofender, e não só de informar, ele deverá responder pelos excessos.

Assim é em relação à atividade política. O homem público perde a sua imunidade se comete exageros e usa expressões infamantes. Nessas hipóteses, sim, ele perde a sua imunidade.

Pois bem, quanto à mentira, aceita-se mais a do cidadão comum do que a do político. É plenamente aceitável a mentira folclórica, como a do pescador; aquela proferida na mesa de um bar para o mentiroso se vangloriar de algum feito; a mentira caridosa, com o objetivo de amenizar o sofrimento alheio. E não nos devemos esquecer do chamado mitomaníaco, que mente para narrar fatos e histórias imaginárias.

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Dizia que para o político mentir é mais grave do que para o homem comum. A ética para alguém que ocupa cargo público, atua no Parlamento ou mesmo apenas exerce a política é muito mais rigorosa. Ele representa, pelo menos em teoria, uma linha de pensamento ideológico que agrega adeptos. Representa também, por meio do voto, aqueles que nele confiaram. É gestor e depositário da coisa e dos interesses públicos. Ainda no plano da teoria e do ideal, é portador da vontade de toda a sociedade.

Políticos podem mentir, talvez possam utilizar-se de mentirinhas veniais, sem consequências. Mas jamais lhes é permitido mentir para engodar, para ludibriar, para iludir todo um povo e outros povos.

A mentira com tais objetivos é inconciliável com os graves e superiores encargos que lhes são atribuídos pela Constituição da República, como representantes do povo. Como a mentira se compatibiliza com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com o desenvolvimento nacional, com a erradicação da pobreza e com a promoção do bem de todos (artigo 3.º da Carta Magna)?

O atual presidente da República tem nos brindado, neste um ano e tanto de mandato, com a descrição de um país imaginário, sonhado, mas não existente, um país criado pela sua imaginação. Uma descrição que agride a verdade e a nossa inteligência e, eu diria com toda a ênfase, a nossa tolerância. Pergunto: até quando?

Espanta-me verificar não haver um seu assessor, militar ou civil, direto ou indireto, que lhe diga: presidente, mentindo tanto, quando e se o senhor falar a verdade, ninguém acreditará.

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Não, não deve haver ninguém que lhe diga o que ele deveria ouvir em prol do seu governo e do Brasil. Se houvesse, não o deixariam colocar-nos como um país perseguido pelos demais; negar a existência dos incêndios e do desflorestamento; tecer loas à política econômica; glorificar a luta contra a pandemia; indicar como responsáveis pela tragédia amazônica os índios e os povos ribeirinhos. Essas e outras preciosidades, que formam um assustador rol de acintes ao que vemos, ouvimos e sabemos, não seriam repetidas se ao seu lado houvesse patriotas.

O boneco Pinóquio, criado por seu dono, Gepeto, tinha um nariz que crescia à medida que mentia. No nosso Pinóquio caboclo nada cresce, além da justa revolta que provoca nos brasileiros dignos. E nem sequer temos um Gepeto para reclamar. Ele surgiu assim e foi, para governar, fruto da escolha de milhões de patrícios, que hoje devem estar amargando um doloroso arrependimento.

Em seu pronunciamento para o mundo, ele ultrapassou todos os limites de uma aceitação racional e de boa vontade. Não vou repetir as falácias. Não acredito que haja algum seu adepto que nelas tenha acreditado. Podem também mentir dizendo o contrário. Mas não é possível que tenham acreditado. Continuarão a apoiá-lo se quiserem, e continuarão a ter todo o nosso desprezo. Estarão apoiando a involução, o retrocesso, a marcha à ré de um país amado, mas desencantado com os seus filhos. Bem, apenas com alguns deles.

 

Antônio Cláudio Mariz de Oliveira é advogado criminalista. Artigo transcrito do jornal O Estado de S. Paulo de 7/10/2020

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