O fim do anonimato (por Gaudêncio Torquato)
A política dependerá cada vez mais de cidadãos que não admitem ser apenas números
A sociedade de massas está chegando ao seu fim com as mudanças em todos os campos da vida humana. Mesmo se descobrindo ainda casos de trabalho escravo da era dos feudos, dos impérios e das colônias, os nossos tempos são marcados por defesa de direitos, maior autonomia e aspiração de felicidade. Em vez do tacão dos colonizadores, a chama libertária. A tendência é a de consolidação de uma comunidade política, em que os anônimos assumam suas identidades em nome da igualdade.
Os franceses chamam isso de “autogestão técnica”. Os cidadãos pautam suas vidas pelo lema “sei o que quero e conheço os meios para chegar lá.” O velho chavão do “Maria vai com as outras” dá lugar à era da expressão individual e grupal. Evidente que é atributo das democracias, não das ditaduras opressoras.
Para alcançar este estágio, a sociedade navegou mares turbulentos, com duas guerras mundiais, morticínios realizados por governantes sanguinolentos, endemias e pandemias, como esta de hoje, incontáveis tipos de governos, até encontrar o sistema das nações mais desenvolvidas, a democracia. E esta também atravessa uma crise crônica, com seus eixos corroídos, como os partidos, as bases, os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário etc.
O cerne da questão reside nos ideários que impregnaram as sociedades, como liberalismo, comunismo, socialismo, e seus afluentes como a social-democracia, o neoliberalismo, o social-liberalismo e afins. Após a queda do Muro de Berlim, em 1989, acelerou-se a desideologização e a emergência do pragmatismo. O arrefecimento ideológico deflagrou a queda da primeira pedra do dominó, responsável pela derrubada das outras pedras do jogo: partidos amalgamados, representantes desacreditados, bases desmotivadas.
E aí voltamos ao início da reflexão, a saturação de velhas fórmulas. Forte indignação – descrédito, ódio, expansão de demandas nos serviços públicos – acendeu o pavio dos novos grupamentos.
Explico. Sem confiança na política, os eleitores enxergam representantes com olhos de desprezo e cobrança por quebra de compromisso.
Criou-se imenso deserto entre os políticos e as bases, vazio ocupado por um conglomerado de entidades com raízes em categorias profissionais, gêneros, raça e etnias. As minorias passaram a exibir poder de gritar, como sindicatos, federações e confederações, grupos, núcleos e movimentos. No Brasil, há cerca de um milhão de organizações não governamentais pressionando das margens para o centro. Constituem as bases e as colunas da democracia participativa.
É a nova realidade. Se cada pessoa é identificada nas ruas por câmeras invisíveis, é sinal que se chega ao final do anonimato. A política dependerá cada vez mais de cidadãos que não admitem ser apenas números. Ou, parafraseando John Stuart Mill, que Bobbio cita em Considerações sobre governo representativo: “há cidadãos ativos e passivos. Os governantes preferem os segundos, mas a democracia necessita dos primeiros. Se prevalecessem os segundos, os governantes acabariam por transformar seus súditos em um bando de ovelhas dedicadas tão somente a pastar o capim e a não reclamar nem mesmo quando o capim for escasso”.
Gaudêncio Torquato é jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político