Em meados de julho, vi na televisão uma cena que causou revolta e me deu ânsia de vômito. Um sujeito truculento, desembargador, não-sei-como-nem-quero-saber, desacatou, ofendeu, humilhou um guarda municipal que cumpria o dever de punir a desobediência ao uso das máscaras de proteção ao coronavírus. Civilizadamente abordado, o delinquente deu uma “carteirada”, inútil, tentando profanar o princípio constitucional de igualdade de todos perante a lei.
Isto vem de longe. Está na raiz de um país escravocrata, autoritário e patrimonialista. E tem uma tradução que passou para história como garantia transgressão ou privilégio: “sabe com quem está falando?”.
O fato me traz à lembrança um velho amigo de meu pai que foi me cumprimentar dias após ter assumido a Secretaria da Fazenda de Pernambuco, com 28 anos (março de 1975). Estava assustado com a enorme responsabilidade que recaia sobre meus ombros e o amigo que me vira nascer, muito sábio, aproveitou a oportunidade para compartilhar sua experiência.
“Krause, disse ele, vai dar tudo certo”. E com bonomia e amizade disse: “Tenha sempre presente que o Brasil é regido por algumas sentenças clássicas: ‘manda quem pode, obedece quem tem juízo’; ‘sabe com quem está falando?´; ‘para os amigos os favores da lei e para os adversários, os rigores da lei’. Ao se despedir lembrou que a minha função era administrar a escassez e, saindo do gabinete, falou no meu ouvido: “aprenda a dizer ‘não’ com um gosto do ‘sim’; não mate as esperanças de ninguém”.
Não sei se cumpri à risca os valiosos conselhos, mas sobrevivi. E sobrevivi o suficiente para enxergar que no Brasil a cultura democrática (não é a democracia formal) ainda não incorporou o brado da Revolução Francesa, “citoyen”, que é a definição do status de igualdade entre as pessoas, antes separadas pela nobreza, o clero e o povo.
A cidadania foi uma conquista civilizatória. Está na Constituição, mas não constitui, ainda, um padrão cultural por conta da obra da escravidão e da desigualdade social. Neste sentido, a obra clássica de T.H. Marshal conceitua a cidadania a partir da confluência dos direitos civis, políticos, e sociais consolidados, respectivamente nos séculos XVIII, XIX e XX, e no século XXI, a Humanidade funda a quarta onda dos direitos da ecocidadania.
O Guarda Municipal cumpriu o dever funcional e a obrigação de zelar pela saúde pública, inclusive, a do boçal capitão-do-mato que já foi condenado pelo “júri popular”.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda