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O ano em que Stalin ressuscitou (Por Hubert Alquéres)

Onda revisionista

Por Hubert Alquéres
Atualizado em 25 nov 2021, 18h53 - Publicado em 30 dez 2020, 13h00

A onda revisionista sobre o papel de Stalin adquiriu visibilidade no Brasil em setembro, a partir de uma entrevista de Caetano Veloso ao programa de Pedro Bial, quando o compositor disse não ser mais um “liberalóide”. O maior nome da tropicália mudou seu juízo de valor sobre o socialismo a partir da influência do youtuber e jovem marxista Jones Manuel. O professor da Universidade Federal de Pernambuco é o maior divulgador no Brasil da obra de Domenico Losurdo, filósofo italiano e principal teórico da “ressurreição” de Josep Stalin.

Para seus críticos, Losurdo é um “terraplanista de esquerda”. Nega o caráter totalitário do stalinismo, assim como os “terraplanistas de direita” negam que a terra é redonda. Seu livro “Stalin – História crítica de uma lenda negra” virou uma espécie de bíblia do neoestalinismo ao pretender dar fundamentos teóricos para a reabilitação do maior ditador da União Soviética.

Segundo Domenico Losurdo, a caracterização de Stalin como um ditador sanguinário é produto da guerra-fria. Impulsionado por esse clima, Khrushchev teria escrito o seu famoso relatório, uma autopsia dos crimes cometidos pelo ditador que governou a União Soviética a ferro, fogo e muito sangue.

O filósofo italiano admite os erros de Stalin, mas os justifica por ter transformado a União Soviética em uma grande potência. Por essa linha, Hitler seria absolvido porque recuperou a economia alemã nos anos 30 e Mussolini, porque com ele os trens não atrasavam. As chamadas conquistas sociais do stalinismo também não o absolve. Outros países tiveram conquistas sociais mais robustas sem regime totalitário.

Quando confrontado pelos fatos, Losurdo apela para o escapismo, por meio do argumento de que os liberais cometeram crimes tão ou mais graves, ao longo da história, por meio do uso da escravidão, da pilhagem e do colonialismo, elementos da chamada acumulação primitiva. Ou seja, o fato de George Washington e Thomas Jefferson terem sido donos de escravos no século 18 justificaria o fato de Stalin ter usado mão de obra escrava no século 20 na construção de ferrovias e outras obras.

Seu arrazoado é uma falácia, em particular sua crítica a Hanna Arendt por equiparar o stalinismo ao nazismo. Ainda que tenha havido diferenças entre eles, ambos banalizaram o mal e fizeram do medo instrumento de dominação.

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Antes da filósofa israelense, o escritor soviético Vasily Grossman, já tinha colocado o nazismo e o stalinismo no mesmo patamar, na sua obra magistral Vida e Destino. Detalhe: o livro de Grossman escrito no início dos anos 50, só foi publicado em 1989. Mikhail Suslov, ideólogo do Partido Comunista da União Soviética, dizia que Vida e Destino só poderia ser publicado 200 ou 300 anos por causa das verdades reveladas  pelo livro.

Outro marxista, Erick Hobsbawm, estimou, em seu livro A Era dos Extremos, o número de mortos no período Stalin entre 10 a 20 milhões de seres humanos. Parte significativa das vidas ceifadas foram decorrência direta da coletivização forçada da agricultura. O excedente expropriado dos camponeses servia para financiar a industrialização acelerada.

A política de dizimação dos kulacks levou milhões de camponeses ao trabalho forçado ou à morte, muitos deles proprietários apenas de um cavalo ou uma vaca, além de um naco de terra.

Estabelecia-se cotas de deskulaquisados. Em um de seus livros, Ievguêni Ievtuchencko relata casos de regiões em que não havia kulacks e os critérios para enquadramento nessa categoria teve de ser rebaixado para preencher as cotas. Havia outra cota macabra: a de inimigos do regime a serem assassinados. Elas também eram infladas quando não havia número suficiente de “inimigos do socialismo”. Stalin testava a fidelidade dos membros do birô político mandando-os assinar listas de “inimigos do povo” que deveriam ser fuzilados.

Na Ucrânia, a coletivização forçada levou a morte por fome de três milhões de pessoas, no episódio conhecido como Holodomor (A grande fome). Em conversa com Churchill, Stalin disse que “esse foi o momento mais difícil que enfrentou”.

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Losurdo glamouriza os gulags, assim como Sartre glamourizou nos anos 50 e depois se arrependeu. Deles saíram a mão de obra escrava para a construção de obras como o canal Mar Branco-Mar Báltico, erguido por mais de cem mil prisioneiros, dos quais dez mil morreram de fome, de frio, de doenças e de estafa.

Sim, a acumulação primitiva utilizou expedientes que não a dignificam. Mas o capitalismo gerou uma democracia como a americana e um estado de bem-estar social na Europa. Já a herança do stalinismo foi rejeitada pelos povos que a experimentaram. Sim, o capitalismo é o pior dos modelos, exceto que até agora não inventaram nada melhor. A própria China comunista rendeu-se a ele.

Até os anos 50, intelectuais e artistas emprestaram seu talento para deificar Stalin. Alguns deles, como o baiano Jorge Amado, tiveram a honestidade de pedir desculpas logo após o Relatório Khrushchev. Quem sabe algum dia outro baiano, Caetano Veloso, peça desculpas por ter aderido ao neostalinismo tropical.

 

Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação, do Conselho Estadual de Educação e da Câmara Brasileira do Livro. Foi professor na Escola Politécnica da USP, da Escola de Engenharia Mauá e do Colégio Bandeirantes. Escreve às 4as feiras no blog do Noblat.


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