Assine VEJA por R$2,00/semana
Imagem Blog

Noblat Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO

Por Coluna
O primeiro blog brasileiro com notícias e comentários diários sobre o que acontece na política. No ar desde 2004. Por Ricardo Noblat. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
Continua após publicidade

Moncloa tropical (por Marcos Magalhães)

Perder o medo

Por Marcos Magalhães
17 mar 2021, 13h00

Madri, janeiro de 1970. Nas ruas desertas da capital espanhola, esvaziada pelo estado de exceção do regime franquista, uma mulher grávida sai desesperada em busca de um hospital, acompanhada pela dona da pensão onde mora. As duas convencem um motorista que levaria o ônibus para a garagem a mudar de rumo, mas não há tempo. Ali mesmo nasce Victor.

Assim começa Carne Trêmula, um filme em que Pedro Almodóvar declara seu amor à moderna democracia espanhola. A brilhante fotografia do brasileiro Affonso Beato mantém a câmera estática após o parto. Quando o ônibus deixa a parada, um grafite se destaca na parede do prédio em frente: “Liberdade, abaixo o estado de exceção!”.

Cinco anos mais tarde, após a morte do general Francisco Franco, começava a transição para a democracia. Em junho de 1977 foram realizadas as primeiras eleições livres desde a Guerra Civil Espanhola.

Depois de vencer o pleito, o líder da União de Centro Democrático, Adolfo Suarez, buscou representantes de partidos e de sindicatos para debater um grande acordo nacional. Nascia ali o Pacto de Moncloa, assinado em outubro de 1977.

Foram, na verdade, dois pactos. Um deles dedicado à recuperação da economia, duramente afetada pela Crise do Petróleo de 1973. Para combater o alto desemprego e uma inflação que se aproximava dos 30%, foram adotadas medidas como a liberdade de associação sindical, a desvalorização da moeda e a redução do déficit público.

Continua após a publicidade

Mas as maiores novidades ficaram nas áreas política e social. Foi abolida a censura prévia à imprensa. Aprovou-se o direito de reunião e associação política. Estabeleceu-se o delito de tortura. E, para proteger as mulheres, houve a despenalização do adultério.

Os acordos abriram caminho para a promulgação da nova Constituição Espanhola, em dezembro de 1978. Poucos anos depois, o país, já democrático, participou do processo de integração do Velho Continente. Atualmente é uma das modernas faces da União Europeia.

Direitos

Vistos de hoje, os direitos estabelecidos a partir do grande acordo de Moncloa parecem básicos. Qualquer democracia moderna prevê liberdade de imprensa e de reunião, estabelece regras claras para a criação de sindicatos e partidos políticos. E protege os direitos de mulheres e de minorias.

Continua após a publicidade

Em várias partes do mundo, porém, todo esse arcabouço civilizatório está sob ameaça. Basta lembrar a invasão do Congresso dos Estados Unidos por fanáticos defensores do ex-presidente Donald Trump, inconformados ante o resultado das eleições de novembro do ano passado.

Ou mesmo das manifestações do último domingo em Brasília, quando simpatizantes do presidente Jair Bolsonaro voltaram a defender uma intervenção militar no país.

Mesmo que o número de mortos na atual pandemia ultrapasse facilmente os 300 mil e que o atual governo continue patinando tanto na saúde quanto na economia, onde a recuperação pode seguir a velocidade tão lenta como a da vacinação, eles não vão parar.

Os seguidores do presidente prometem levar às ruas até as eleições suas bandeiras contra o isolamento social e muitas vezes, claro, contra a própria democracia.

Continua após a publicidade

E o que farão os diversos movimentos de oposição a Jair Bolsonaro? Até aqui fala-se muito de nomes. O ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva já ocupou boa parte do espaço político depois que os processos contra ele foram redirecionados à Justiça do Distrito Federal e que ele se tornou livre para concorrer mais uma vez ao Palácio do Planalto.

O ex-governador Ciro Gomes promete se manter no páreo. O chamado centro político caminha lentamente para definir suas candidaturas, entre postulantes como os governadores João Dória e Eduardo Leite, do PSDB, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, do DEM, e possivelmente o apresentador de televisão Luciano Huck, ainda sem partido.

Tropical

O noticiário, por enquanto, mostra uma disputa por espaço. O PT pode buscar uma aliança mais ampla, na tentativa de reeditar antigos sucessos de Lula. E o congestionado centro procura se apresentar como alternativa viável a um provável embate entre Lula e Bolsonaro no segundo turno das eleições presidenciais.

Continua após a publicidade

Ou seja, até agora fala-se muito do que os divide. Mas fala-se pouco sobre o que os pode unir. Pois os acordos de 1977 podem aqui servir de inspiração. Naturalmente não existe espaço, como havia então na Espanha, para um entendimento que inclua o governo. Mas o amplo arco de oposição a Bolsonaro poderia costurar um tropicalizado Pacto de Moncloa.

Como as diferenças entre os diversos partidos de oposição em relação à economia são muito grandes, pode-se apenas, nesse caso, concordar em discordar. Ou adotar metas genéricas, como a retomada do crescimento após a pandemia.

Existe, sim, um grande espaço para o entendimento político e social. A começar pelas mesmas velhas premissas básicas adotadas pelos espanhóis, como a ampla defesa das liberdades democráticas.

Partidos de centro e de esquerda poderiam, bem antes das eleições, buscar um entendimento sobre as necessárias reformas do sistema político e sobre a defesa de princípios básicos do regime democrático, como a independência e a harmonia entre os Poderes.

Continua após a publicidade

A oposição também poderia assumir compromissos comuns em defesa da saúde pública e da ciência, que mostraram sua importância durante a pandemia. Existe ainda espaço de busca de consenso em temas como o estímulo à cultura, a proteção do meio ambiente e a reconstrução da política externa brasileira.

Se conseguirem costurar acordos destinados a resgatar o Brasil do obscurantismo e do negacionismo, antes mesmo de definirem seus candidatos às eleições do ano que vem, os partidos de oposição prestarão um grande serviço ao país.

As ruas brasileiras ainda estão (parcialmente) desertas por causa da pandemia. Um pouco como as ruas desertas de Madri durante o estado de exceção – primo do estado de sítio ao qual Bolsonaro se refere com frequência quando se sente acuado.

Mas podem voltar a atrair multidões em 2022, quando o vírus nos der uma trégua. Os bolsonaristas continuarão nas ruas, como sempre estiveram. Seus opositores, já vacinados, também voltarão a se manifestar. Com suas diferentes propostas, mas quem sabe também com metas comuns, que tornariam mais fácil um acordo para o segundo turno.

Ao saber da invasão do Congresso dos Estados Unidos, Bolsonaro advertiu que alguma coisa “bem pior” poderia acontecer por aqui, após a divulgação dos resultados das eleições no ano que vem. Uma espécie de ameaça a quem pensa em substituí-lo no poder.

Aqui também a Espanha pode nos dar o exemplo.

Ao final do filme de Almodóvar, e já com 26 anos, Victor, que nasceu dentro de um ônibus na então silenciosa Madri, acompanha a companheira Helena em um carro a caminho do nascimento do primeiro filho. Apesar da pressa, ele não se assusta com as ruas cheias de gente e com o engarrafamento. “Há muito tempo”, diz Victor com um sorriso, “a Espanha perdeu o medo”.

Marcos Magalhães escreve no Capital Político. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.