A decisão do governo federal de antecipar o envio da reforma administrativa está em linha com sinais de preocupação quanto à situação fiscal pós-pandemia. Há receio de uma desconexão entre os objetivos políticos do presidente Jair Bolsonaro, que pode ter ficado tentado a ampliar o gasto sem sustentação, e a realidade do caixa.
Nesse sentido, o país correu (e ainda corre) o risco de perda de credibilidade da autoridade econômica, com consequências fiscais e políticas potencialmente difíceis. Basta dizer que a última líder a perder a confiança do mercado foi a ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
O mercado fala
O Tesouro Nacional fez soar o alerta na semana passada, ao solicitar a transferência de R$ 325 bilhões para um colchão de liquidez frente à dificuldade de emissão de dívida no patamar atual de juros. O debate fiscal assumiu outro patamar.
Como esclareceu o economista e consultor Luís Fernando Mendes, o movimento é puramente contábil e tem por objetivo ajudar o Tesouro a rolar a dívida.
No mercado, além do aumento do valor do prêmio pago ao financiamento da dívida, tendência que a transferência mencionada acima buscou suavizar, há o encurtamento dos prazos de vencimento e a aproximação de uma dinâmica semelhante à de outros momentos em que o país enfrentou problemas de solvência. Nesse sentido, encerra-se cedo e abruptamente a fantasia vivida por algum tempo em Brasília de que haveria tolerância quanto a um endividamento maior em função da crise do coronavirus.
O governo entende
No momento, o governo mostrou ter assimilado o recado. O fato de ter abdicado do Renda Brasil na peça orçamentária, enviada nesta segunda (31), e ter previsto um aumento de 20% do Bolsa Família para ampliar a base de beneficiários, pode ser interpretado como uma aposta conservadora frente às ideias de unificação de programas sociais com o dobro do valor atual, pois exigiria uma enorme ginástica legislativa e carregaria 2021 de mais incerteza.
Além de ter deixado de lado, por enquanto, o Renda Brasil, o governo anunciou o envio de um projeto de reforma administrativa na próxima quinta (3). Politicamente, pode ser mais fácil começar por ela porque afeta apenas novos servidores. Mas também pode ser um engano. Dependendo da reestruturação de carreiras, extinção de penduricários, teto salarial, entre outros, é possível cortar custos de quem já está na ativa.
Na lei orçamentária apresentada, outras reformas estão endereçadas, além da administrativa: Pacto Federativo (permissão para estados e municípios cortarem salários proporcionalmente à redução de jornada dos funcionários públicos), privatizações, reforma tributária com viés arrecadatório, abertura comercial, redução de subsídios fiscais e medidas para fomento aos mercados de capitais (atração de investimento estrangeiro).
As chances de sucesso do governo dependem da capacidade de implementação dessas medidas (especialmente a redução de custos da máquina) em profundidade e velocidade adequadas. Se conseguir, conserva as condições políticas que têm permitido a redução de juros e melhora o fluxo de investimentos privados. Se não, a pressão fiscal aumenta, o risco real de aumento de impostos e de juros cresce e o ambiente de investimentos mantem-se precário.
Bolsonaro pode até não ser realmente do tipo que tem amor por receitas liberais como a redução do Estado, por exemplo, como foi vendido durante a campanha. Mas, se conservar o senso de realidade, dando importância aos diversos sinais e tomando medidas coerentes com aquilo que os fatos relatam, pode conservar credibilidade suficiente para manter o país estável neste momento de transição fiscal e acerto de contas com o Covid.
Leonardo Barreto. Doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) com especialização em comportamento eleitoral e instituições governamentais. Foi professor substituto da UnB e já coordenou mais de 50 estudos com parlamentares, jornalistas e autoridades do Executivo, nos planos federal, municipal e estadual. Ao longo de sua atuação profissional, acumulou profundo conhecimento empírico e científico sobre a lógica da ação política.