De Salvador a Buenos Aires: entre Ulysses, Isabelita e professor Fernandez
O favorito a deslojar o liberal Mauricio Macri
“Ninguém me contou, eu estava lá, eu vi”. Repito o que escreveu Sebastião Nery, Anos 70, no antológico texto de apresentação do livro “Rompendo o Cerco”, de Ulysses Guimarães, sobre falas e feitos do timoneiro político da resistência democrática no Brasil, durante o regime militar. E o faço depois de ler o perfil de Alberto Fernandez, no El País, em texto assinado de Buenos Aires por Enric Gonzalez. Fernandez acaba de sair das primárias presidenciais ungido por ampla vitória nas urnas, que o coloca na condição de favorito a deslojar o liberal Mauricio Macri da Casa Rosada e devolver o poder ao peronismo na Argentina.
Esclareço que a citação não tem a ver com as prévias recentes na beira do Rio da Prata, embora tenha dito, por telefone, ao editor deste blog, que pensava em me afastar por uns dias do “furdunço” brasileiro, para dar uma espiada no “merengue” dos hermanos do sul do continente, a exemplo do que já fiz tantas vezes ao longo de anos. Desisti da viagem, e não me arrependo. Fica para depois, quem sabe em outubro que vêm, para conferir a decisão que se aproxima.
O escrito de Nery tem tudo a ver, no entanto, com dois acontecimentos referenciais, aqui e lá. Que este jornalista julga apropriado relembrar, na contextualização dos fatos deste agosto de 2019. Pela banda de cá, a noite dos cães da PM, açulados contra Ulysses, em Salvador, no pavoroso e heróico 13 de Maio de 1978, comemorativo da Abolição, que deu origem ao livro referido. Episódio histórico, “causador de sentimento misto de orgulho e pavor”, no dizer de dona Mora, sobre o papel do marido. Então na sucursal do JB, na Bahia, fui testemunha ocular da noite para não esquecer.
Do lado de lá, nos idos da campanha de Hector Câmpora e Isabelita Peron, na volta de Peron do exílio na Espanha, onde esta “trampa”, na Argentina atual, da chapa Alberto Fernandez/Cristina Kirchner se inspirou. Eu também estava lá, eu vi. Assim como no Igual ao 13 de Maio da consagração da coragem e do brilho de Ulysses na Praça do Campo Grande, do monumento aos heróis populares do 2 de Julho da Independência na Bahia -, e da antiga sede do MDB, de cuja sacada Ulysses Guimarães falou e fez história, depois de afastar baionetas e enfrentar cães ensandecidos.
Recordo, igualmente, da intensa vibração política e cívica que vi, anos antes, na culta, cosmopolita e florescente Buenos Aires, da época, às vésperas das ansiadas eleições presidenciais livres e democráticas: Nas paredes da capital, os grafites de apelos ao orgulho e machismo latino-americano: “Vuelva, Peron. Somos machos e somos muchos”. E os magníficos comícios de Raul Alfonsin, estadista culto e moralmente íntegro e inatacável candidato derrotado da UCR contra o peronismo. E o monumental comício, em San Andrés de Gilles, de Hector Câmpora, o vencedor, com Isabelita, sua vice no arranjo peronista. Eleita a chapa, Câmpora renunciou em seguida. Ela ocupou a Casa Rosada e instalou os tapetes para o retorno de Juan Peron. E deu no que aí está.
No El País, leio o perfil do ex-ministro particular nos governos dos kirchners, que largara a política, desalentado, para retomar sua cadeira de professor na Universidade de Buenos Aires. De repente o professor volta candidato a presidente, com Cristina Kirchner, de vice, na chapa peronista. Sinto a amarga sensação de que o tempo parou na Argentina.
Vitor Hugo Soares é jornalista, editor do site blog Bahia em Pauta. E-mail: vitors.h@uol.com.br