Coronavírus: carisma de Mandetta incomoda (por Leonardo Barreto)
De ministro do governo a ministro do Estado
Em entrevista concedida no final da noite da última segunda-feira, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, afirmou que tentou ler durante o final de semana o livro “O Mito da Caverna”, de Platão. Também conhecida como “Alegoria da Caverna”, o texto fala da dificuldade de reconhecer a verdade e exerce uma influência estruturante sobre a cultura ocidental até os dias atuais.
Resumidamente, o mito fala de pessoas que viviam acorrentadas no fundo de uma gruta. Durante todo o tempo, sombras eram projetadas em uma das paredes, entretendo e iludindo aquela população, que acreditava que as imagens correspondiam à realidade.
Certo dia um homem quebra as correntes e escala as pedras até a saída. A luz do sol cega – o por instantes, mas depois pode admirar como as coisas eram de verdade. Em meio ao deslumbramento, sentiu compaixão dos seus companheiros e voltou para contar a boa nova.
Ao dizer, no entanto, que tudo aquilo que as pessoas viam não passava de sombras e que a realidade estava lá fora, o homem foi desacreditado, julgado e condenado à morte. Não são poucos os percebem nessa alegoria, escrita pouco menos de 350 anos antes de Cristo, uma referência à própria epopeia de Jesus.
O ministro disse não ter entendido o livro. No entanto, esse é um tipo de leitura que as pessoas buscam espontaneamente por uma dessas duas razões: ou Mandetta teve dúvida das suas convicções (se a estratégia de isolamento é realmente a melhor) ou teve medo de morrer por elas (se vale a pena passar pelo desgaste infligido pelo questionamento do presidente Bolsonaro).
Independentemente do que pode ter motivado o ministro, o fato é que não houve rendição, embora o ministério tenha sinalizado a flexibilização do distanciamento social em cidades nas quais haja pelo menos 50% da estrutura de saúde ociosa.
Mas, em uma entrevista coletiva sem muita preocupação em esconder a precária convivência com o presidente, Mandetta reafirmou por três vezes que se orientará pela ciência, com foco e planejamento e não se renderá às flutuações das opiniões. Mandetta testará a própria fé. Mas não apenas isso.
É impossível ignorar que o ministro é o adversário político mais expressivo que o presidente Bolsonaro encontrou até aqui, a ponto de não conseguir demiti-lo, apesar das suas convicções o impelirem a fazê-lo.
Mandetta, hoje, tem apoio da população, dos poderes Legislativo e Judiciário e tem o suporte também do Alto Comando das Forças Armadas, embora este seja mais institucional que por concordância de mérito.
Nesse aspecto, Mandetta não representa apenas uma política de combate ao coronavírus. Ele se tornou a primeira resistência séria à força do carisma de Jair Bolsonaro e estabeleceu um confronto de visões: uma política cuidadosa e racional de um lado e um voluntarismo impetuoso do outro. A raposa e o leão.
Como não há espaço para ingenuidade em política, é possível que parte dessa contraposição clara ao Bolsonarismo que Mandetta foi levado a adotar não seja fruto do acaso e que, hoje, o ministro manipule conscientemente as condições que detém.
A resistência demonstrada pelo ministro e o discurso articulado são evidências de que ele reconhece seu papel e que voltou da viagem à caverna de Platão disposto a desempenhá-lo para muito além das questões de saúde.
Mandetta deixou de ser ministro do governo e passou a ser um ministro de Estado, apoiado pelos poderes Legislativo e Judiciário e governadores. E com a imagem positiva cristalizada em boa parte da sociedade.
Leonardo Barreto é doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB); https://capitalpolitico.com/