Assine VEJA por R$2,00/semana
Imagem Blog

Noblat Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO

Por Coluna
O primeiro blog brasileiro com notícias e comentários diários sobre o que acontece na política. No ar desde 2004. Por Ricardo Noblat. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
Continua após publicidade

Assassinos! (Por Denis Lerrer Rosenfield)

Urge investigação minuciosa sobre quem violou os direitos de uma criança abusada

Por Denis Lerrer Rosenfield
Atualizado em 18 nov 2020, 20h00 - Publicado em 31 ago 2020, 13h00

Foi esse o grito da turba ensandecida diante de um hospital, no Recife, encarregado da interrupção da gravidez de uma menina de 10 anos, estuprada sistematicamente pelo tio. A manifestação seguiu um ritual de perseguição a todos os que se colocam, voluntariamente ou não, contra as convicções de um grupo de fanáticos que procuram impor de qualquer maneira suas ideias. O evento tornou-se ainda mais dramático por mostrar a falta de sensibilidade moral, para não dizer psicológica, diante de uma criança desprotegida. Onde fica o amor ao próximo?

Uma operação que deveria ser sigilosa, para a proteção da vítima, foi publicamente escancarada, tendo ela de entrar escondida no hospital. A ativista radical de extrema direita Sara Giromini, dita Sara Winter, já bem conhecida por seu acampamento anterior na Esplanada dos Ministérios, com a complacência de autoridades, divulgou em suas redes o endereço onde seria realizada a interrupção da gravidez. Acontece que há um problema da maior gravidade aqui envolvido. Onde ela obteve as informações sobre o hospital? Quem as forneceu? Tem contatos com autoridades? Sua responsabilidade é flagrante! Urge uma investigação minuciosa que produza resultados, visto que o ocorrido é intolerável jurídica e moralmente!

A história é aterradora. Essa criança foi abusada sistematicamente por seu tio desde os 6 anos de idade, ficando à mercê dele, com ameaças de que se não consentisse ele mataria seu avô, a quem é muito afeiçoada. Não se sabe exatamente o que acontecia naquela “família”, porém salta aos olhos que estamos diante de uma menina desprotegida. Não tinha nenhum domínio de si mesma.

Estritamente falando, não tinha liberdade de escolha, seu corpo era usado e abusado. Assim transcorreram anos até que o inevitável numa situação dessas terminou por se consumar: a gravidez. Imaginem-se os tormentos dela ao tomar progressivamente consciência do que lhe estava a acontecer, até conseguir verbalizá-lo para sua avó. Foi então que ambas recorreram às autoridades. O sofrimento e a angústia eram crescentes.

Continua após a publicidade

Tiveram a sorte de encontrar no secretário da Saúde do Espírito Santo uma pessoa compreensiva, que soube corretamente avaliar a relevância do caso, atento à condição humana dessa criança. Note-se que o secretário é médico e pertence à Igreja Batista. Faço essa observação para que não se faça indevidamente a identificação entre conservadorismo e insensibilidade moral com essa criança, havendo casos em que, por mais distintas que sejam as convicções religiosas, a interrupção da gravidez é necessária. Quero dizer com isso que estamos diante de um caso, previsto em lei, que se situa para além das oposições entre “abortistas” e “não abortistas”. A interrupção da gravidez, dependendo dos casos, e não necessariamente apenas os hoje previstos em lei, é necessária por afetar irremediavelmente a mãe.

O secretário, ademais, alertou para o problema de alguns conselhos tutelares que postergam sua decisão para tornar irreversível a gravidez, de modo que a interrupção caia fora do que está temporalmente contemplado em lei. Seria uma postergação voltada para afetar a vítima em proveito de convicções religiosas que procuram se impor de qualquer maneira, até mesmo à revelia da lei. Em nome da moralidade e da religião, o desamor à vítima é patente, numa assombrosa expressão de insensibilidade, para além da irresponsabilidade no cumprimento de suas funções.

Decisão tomada, a criança foi removida rapidamente para o Estado de Pernambuco por ter condições hospitalares propícias para esse tipo de operação. Foi quando irrompeu o grito de “assassinos!”, mormente endereçado, no ato, àqueles que iriam realizar a intervenção. O comportamento de médicos e enfermeiros foi exemplar, cumprindo a lei, imunes aos ataques daqueles fanáticos. O mesmo não se pode dizer de um médico que, na noite anterior, foi ao quarto da menina para dissuadi-la de realizar a interrupção. Não tinha nenhum mandato para isso, invadiu a privacidade de uma pessoa desprotegida e procurou arbitrariamente impor suas convicções. É propriamente intolerável que uma pessoa dessas exerça a medicina. O que farão os responsáveis das entidades médicas? Segundo se soube, há uma investigação sigilosa em curso. Espera-se, em nome da dignidade humana, que ela produza resultados!

Continua após a publicidade

A menina com a girafa, bichinho que trouxe consigo, símbolo precisamente da infância, de uma infância ultrajada, violada, não teve nem direito ao sossego, porque algumas autoridades religiosas resolveram rezar pela “criança abortada”. A reza mudou de lugar, numa inversão completa de valores morais. De repente, opera-se um deslocamento, deixando ainda mais desprotegido aquele ser, que carece de compaixão. O que pretendiam? Que ela tivesse um bebê fruto do incesto, da violência? Deus deu aos homens a liberdade, e não a ignomínia de uma espécie de “fatalidade”, como se tudo o que acontece fosse fruto da vontade Dele, pois assim chegaríamos a justificar os piores atos de maldade cometidos no mundo como se fossem divinos, o que seria uma blasfêmia.

 

Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.