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Por Vilma Gryzinski
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Volta de Cristina Kirchner na Argentina: eles são nós amanhã?

Fracassos do governo Macri, afundados no mesmo trio maldito de sempre - inflação, recessão, desvalorização -, impulsionam a ex-presidente da corrupção

Por Vilma Gryzinski 11 Maio 2019, 08h34

“Por que os argentinos votam em ladrões?”. A pergunta foi feita num programa de televisão por Elisa Carrió, deputada sem papas, nem nenhum outro tipo de autoridade, na língua.

A desbocada Lilita sempre foi uma espécie de anti-Cristina Kirchner, sem o charme e o apelo popular da ex-presidente.

Agora, como os demais argentinos – e o resto do mundo – está assistindo a ascensão de sua rival rumo ao que parece uma inacreditável terceira eleição como presidente.

Todo mundo, hoje, desconfia profundamente de pesquisas eleitorais, mas é impossível, além de tolo, ignorá-las. Na última, Cristina aparecia nove pontos à frente de Mauricio Macri no segundo turno, em outubro próximo.

Protegida pela imunidade do mandato de senadora, um escudo para as cinco ordens de prisão e os sete processos por corrupção em níveis telúricos, Cristina faz a fina enquanto Lilita se descabela.

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Em sucessivos lançamentos de seu livro de “memórias”, ainda por cima intitulado Sinceramente, ela respondeu aos apelos em favor de um pacto pela estabilidade feitos por Macri, diante do abismo que de novo se abre para o país, propondo “um novo contrato social de todos os argentinos com metas verificáveis, quantificáveis, cobráveis”.

Ver a líder política que enfiou o país no conhecido buraco do populismo latino-americano de esquerda usar expressões semelhantes seria para dar risada se: a) o assunto não fosse tão sério; e b) se não indicasse um rumo que outros países circulando no mesmo horizonte de eventos possam tomar.Não é preciso dizer qual.

É amplamente conhecido o nosso eterno pas-de-deux com a Argentina, enredados que somos, tão diferentes e tão iguais, no mesmo continuum histórico-políitico e mais quantos hífens se queira acrescentar.

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Como os outros integrantes de sua tribo, e muito mais num país com a indecifrável permanência do fenômeno peronista, Cristina tem naturalmente um grande espaço nas preferências dos chamados “choripanes” – uma referência ao delicioso sanduíche de pão com linguiça do povão, distribuídos nos comícios. A mortadela argentina, se preferirem.

Apocalipse

O favorecimento circula em torno dos 40% a 50% em tempos normais, contrabalançado por uma extrema rejeição ao estilo, à ideologia, à rapinagem, à maguiagem, aos resultados e à teatralidade farsesca dela.

Como os tempos atuais são anormais, o prestígio de Cristina sobe, movido pelos fieis de sempre ou pelos desesperados com a falta de opção.

Os quatro cavaleiros do apocalipse econômico chicoteiam a “égua”, uma expressão brutal que era usada contra Eva Perón e que Cristina recuperou para si mesma, numa das muitas comparações tácitas que faz com a  mitificada “mãe dos pobres” do peronismo. São eles:

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Desvalorização: o dólar passou de 25 para 40 pesos em um ano. Inflação: as projeções indicam pelo menos 40% até o fim do ano. Recessão: previsão de 1,7% de encolhimento, depois de 1,9% em 2018.

Por fim, a desconfiança terminal: a cada ponto que Cristina sobe, o dinheiro foge, o mercado despenca, o risco país dispara, aumentam as suspeitas de que virá novo calote.

E renasce um conhecido fantasma argentino, o de que nenhum presidente que não seja peronista consegue terminar normalmente seu mandato – renuncia, foge de helicóptero, antecipa a transmissão do cargo ou alguma outra maldição.

Durou menos de dois anos a esperança de que a  surpreendente vitória presidencial de Macri, um milionário de berço com experiência internacional, conhecimento dos fundamentos da economia e comprometimento com a diminuição da pobreza, levasse à “virada” sonhada para os países latino-americanos, alcançada apenas parcialmente pelo Chile.

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Macri ficou preso na armadilha montada por uma longa corrente de antecessores: a base econômica contaminada por entraves profundos, acrescidos de benefícios sociais insustentáveis nessas condições.

“Hoje tem quase o dobro de planos sociais que nós”, comparou Cristina, trolando o presidente. Como ela se concede uma espécie de licença para falar qualquer insanidade, ainda mais diante de audiências que a adoram, ainda fez uma comparação nada menos do que com a economia exuberante impulsionada por Donald Trump.

“Diziam que não podíamos aquecer a economia e olhem para os Estados Unidos: estão voando”, ironizou.

De novo, seria para rir se não desse vontade de chorar diante das catástrofes que vão sendo escritas nos muros.

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Vestidos de noiva

A eleição de Cristina Kirchner não está garantida. Aliás, a candidatura não está nem lançada – uma coqueteria política.

Algumas políticas de Macri, como a do combate ao narcotráfico, têm quase 70% de aprovação de uma população assolada pela criminalidade. A rejeição a Cristina continua forte, embora, obviamente, o ocupante atual da Casa Rosada tenha que pagar uma conta maior.

Seu renascimento tem muito a ver com as nossas desgraças habituais, oscilando entre políticas liberais meia-boca e populistas de boca inteira. E mais ainda com o fabuloso, misterioso, assustador inconsciente coletivo argentino.

Sem nenhuma reivindicação  à grandeza, desmistificada por uma roubalheira contínua  e escandalosa, Cristina conseguiu cavar um lugar no panteão dos mitos nacionais.

Tomás Eloy Martínez captou genialmente estas correntes contraditórias no livro Santa Evita, a mais fabulosa recriação da história da mulher que foi de atriz de rádio com atividades no ramo de entretenimento noturno a de reverenciada mulher de Juan Perón, morta aos 33 anos de câncer no útero.

Outro gênio literário, Mario Vargas Llosa, descreveu assim os sentimentos contraditórios provocados pelo livro, que leu durante uma viagem à Argentina:

“Eu, que detesto com toda a minha alma os caudilhos e os homens fortes e, mais ainda do que eles, seus séquitos e as bovinas multidões que acorrentam, me descobri de repente, na madrugada ardente de meu quarto com coluna dóricas – sim, com colunas dóricas – do Grande Hotel Tucumán, desejando que Evita ressuscitasse e retornasse à Casa Rosada para fazer a revolução peronista distribuindo casas, vestidos de noiva e dentaduras.”

Dentaduras e vestidos de noiva, fora o pão com linguiça, hoje conhecidos como bolsa-tudo, são o nosso destino inescapável? Não conseguimos nada melhor do que isso?

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