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Pulp fiction: jornalista foi sequestrado? Morto? Esquartejado?

Todas as opções são ruins no caso do desaparecimento de Jamal Khashoggi e a encrenca mundial criada para o príncipe herdeiro saudita

Por Vilma Gryzinski
Atualizado em 11 out 2018, 16h03 - Publicado em 11 out 2018, 15h19

As evidências levantadas até agora sobre o caso do jornalista que desapareceu depois de entrar no consulado saudita em Istambul e a rede de interesses políticos que o cerca são tão estonteantes que é difícil entender por onde começar.

Na melhor, e menos provável, das hipóteses, ele pode reaparecer em algum lugar do mundo civilizado, inventando uma desculpa esfarrapada, típica de dissidentes “arrependidos”.

Dizer, por exemplo, que foi tudo um mal entendido e só tinha mudado de ideia sobre o casamento com Hatice Cengiz, a noiva turca que ficou esperando por ele do lado de fora do consulado. Ninguém acreditaria, claro.

Haveria um grande alívio, mas ficaria a impressão de que o príncipe herdeiro e supremo poderosos da Arábia Saudita, Mohammed Bin Salman, não tem limites mesmo para os padrões do Oriente Médio.

Na pior hipótese, com a comprovação de que o jornalista foi barbaramente “queimado”, MBS, como é conhecido, estaria frito, com graves consequências políticas e diplomáticas.

Isso, repetindo, se forem comprovadas as tétricas acusações que estão sendo plantadas por “fontes” da Turquia: Khashoggi estava sendo esperado por uma equipe especial de assassinos do serviço de inteligência quando entrou no consulado, no começo da tarde do último dia 2, imaginando que só iria tirar um certificado de divórcio para poder se casar de novo.

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Segundo estas versões, ele foi torturado, morto e esquartejado com uma serra elétrica de necrópsia por um médico legista incluído na abominável missão especialmente para isso. Os pedaços do corpo foram retirados em caixotes e levados de volta para a Arábia Saudita em jatos fretados.

Normalmente, seria quase impossível acreditar nessa versão Pulp Fiction, como foi chamada por causa do sanguinolento filme de Quentin Tarantino.

Para começar, ela foi espalhada entre jornalistas locais e estrangeiros por integrantes de um governo, o de Recep Tayyp Erdogan, que acabou com a liberdade de imprensa na Turquia.

Centenas de jornalistas turcos foram presos e condenados a penas pesadíssimas – prisão perpétua em seis casos – desde que Erdogan sobreviveu a uma fracassada tentativa de golpe, em 2016, e reagiu com medidas brutais.

Mas as acusações turcas contra a inteligência saudita também mostram em detalhes uma movimentação altamente suspeita.

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Câmeras de segurança mostram a chegada, em dois jatos fretados, de quinze sauditas, alguns com passaportes diplomáticos. Todos foram identificados, com fotos e nomes publicados num jornal turco.

São agentes da inteligência, militares da segurança do príncipe e até o tal legista, chefe da Medicina Legal do Departamento de Segurança.

Registros de hotéis e a movimentação de utilitários de luxo, com vidros mais escuros do que a noite dos tempos, entre o consulado e a residência do cônsul saudita, criam uma narrativa espantosa.

Erros amadores

O processo de identificação dos sauditas, cotejado com informações das redes sociais, foi muito mais rápido do que aconteceu com dois os agentes da inteligência militar russa mandados à Inglaterra para matar o ex-espião Sergei Skripal.

Os russos foram flagrados por câmeras onipresentes de maneira similar: no desembarque no aeroporto em Londres e em trajetos na cidadezinha de Salisbury, perto da casa de Skripal, que sobreviveu, juntamente com a filha, ao agente tóxico Novichok.

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Ao contrário dos sauditas, viajavam com passaportes falsos, emitidos pelo GRU, sob os codinomes de Ruslan Boshirov e Alexander Petrov.

Identidades verdadeiras: Anatoliy Chepiga, coronel do GRU, e Alexander Mishkin, agente secreto com formação em medicina com a possível função de evitar que fossem contaminados.

Teriam os sauditas conseguido sucesso onde os russos, de legendária habilidade em operações clandestinas, fracassaram?

Ou o sucesso no possível assassinato num país estrangeiro foi na verdade uma operação formidavelmente idiota, com erros amadores e pistas em quantidades industriais?

Por que correr riscos tão enormes para matar um jornalista justamente num país como a Turquia, que tem os meios para fazer investigações sofisticadas e a vontade de ferrar um adversário como Mohammed Bin Salman?

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E por que Jamal Khashoggi incomodava tanto o jovem herdeiro, que gasta centenas de milhões de dólares para promover a imagem de reformista? Será que um príncipe esperto e bem informado não desconfiaria que sumir com um colunista do Washington Post seria uma péssima ideia?

Post, New York Times e, principalmente Al Jazeera estão cobrindo intensamente o caso. Só para lembrar: Al Jazeera é uma televisão mantida pelo emir de Catar, mergulhado até o turbante numa disputa com o príncipe saudita.

No emaranhado de interesses ocultos e jornalismo verdadeiro, uma das reportagens mais interessantes sobre o caso saiu na Spectator inglesa, assinada por John R. Bradley.

Seu diferencial: Bradley fala árabe, conhece muito bem a Arábia Saudita e trabalhou com Khashoggi no jornal Arab News.

A resposta de Bradley à primeira dúvida sobre o caso – o poderoso príncipe seria capaz de mandar matar o jornalista – é curta e grossa: “Podem apostar que sim”.

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Plano B

O retrato que faz de Khashoggi é bem diferente da imagem de bravo defensor da democracia sacrificado no altar da liberdade.

Segundo Bradley, o jornalista saudita era filiado da Irmandade Muçulmana, a organização islamista criada no Egito, matriz ideológica dos palestinos do Hamas e com enorme influência na Síria e na própria Turquia.

Um dos mais sofisticados truques da Irmandade Muçulmana, amplamente aplicado durante o período que ficou conhecido como Primavera Árabe e que chegou a lhe dar o poder, brevemente, no Egito, é usar as regras do processo democrático para alcançar o objetivo final, implantar regimes islamistas.

Khashoggi , diz Bradley, não só “nunca escondeu que era a favor do arco da Irmandade Muçulmana em todo o Oriente Médio”, como havia estava se firmando como o líder dessa corrente na Arábia Saudita.

Tinha dois milhões de seguidores nas redes sociais e, ao se autoexilar nos Estados Unidos, ganhou uma plataforma bem no coração da potência americana. E num dos mais importantes e autodeclarados focos da resistência a Donald Trump. Tudo que prejudicar o futuro rei saudita – se não acontecer coisa pior antes -, obviamente atinge Trump.

Mais, diz Bradley: sempre circulou entre as obscuras camadas dos serviços de inteligência e conhecia profundamente as conexões de vários poderosos do reino com a Al Qaeda.

As entrevistas que fez com Osama Bin Laden nos anos oitenta e noventa são um indicador de atividades nada conectadas com o jornalismo. “Na época, trabalhava para os serviços de inteligência com a missão de propor a Bin Laden que se reconciliasse com a família real saudita”, é uma das bombásticas afirmações de Bradley.

Segundo o inglês, o príncipe Mohammed Bin Salman tentou recentemente uma operação sedução: propôs a Khashoggi que voltasse para a Arábia Saudita. Obviamente, com um cargo muito bem pago.

Khashoggi recusou a proposta, o que poderia ter precipitado o Plano B. Ou M, de Máfia.

Se houver uma investigação confiável indicando que o príncipe cometeu essa incrível abominação, o jogo de forças atualmente em vigor no Oriente Médio pode desabar.

Nesse jogo, Trump apostou tudo no herdeiro, atraindo-o para a aliança não declarada com o Egito e Israel. Só os ingênuos se espantam em ver sauditas e israelenses do mesmo lado, mas é o que acontece atualmente. Seria com base nesse tripé que o governo Trump tentaria forçar um acordo de paz entre palestinos e Israel.

Dá para imaginar o tamanho das forças contrárias? E a enormidade da ironia de um príncipe jovem, ousado e reformista que destrói um projeto inteiro ao agir segundo as mais antigas, tribais e brutais regras de sempre?

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