Por que a esquerda odeia Boris sem sequer conhecer seu perfil
Ao contrário de outros populistas de direita, o novo primeiro-ministro é uma flor da elite bem-pensante, mas Brexit basta para surtar oposição
Nunca ninguém perdeu dinheiro, ou reputação, ao apostar no clássico do ceticismo sobre o prognóstico reservado a qualquer novo governante: não tem a menor chance de dar certo.
E poucos governantes assumiram com tantas chances de dar errado como Boris Johnson.
Mesmo que ele consiga o impossível e conduza o melhor processo possível de desligamento do polvo de mil tentáculos, a União Europeia, vários setores da economia sofrerão impactos negativos muito antes que os positivos comecem a mostrar resultados.
A oposição baseada em argumentos racionais ao Brexit tem fundamentos profundos e reais, refletidos em literalmente milhões de análises de especialistas, economistas, banqueiros, associações empresariais e comerciais, executivos e acadêmicos demonstrando-os.
A defesa do Brexit é fundamentada essencialmente numa expressão de desejos: o Reino Unido pode se dar melhor se sair do mercado comum que levou cinquenta anos para ser construído se se reinventar como potência comercial independente e aproveitar as janelas de oportunidades criadas por menos regulamentações e menos protecionismo.
O maior mistério sobre Boris Johnson é, justamente, se entrou no ônibus do Brexit por convicção profunda ou para fazer graça, ser do contra e conquistar um espaço mais popular (embora ninguém desconfiasse de quanto o era antes do choque mundial do referendo de junho de 2016).
Constitucionalmente, Boris é um membro da elite pró-Brexit, mais ainda do que David Cameron, o primeiro-ministro que convocou o referendo achando que assim se livraria da pressão da ala antieuropeísta do Partido Conservador.
Os dois, por sinal, estudaram em Eton, onde o uniforme diário era fraque, e Oxford, o circuito dos eleitos. Começaram como jornalistas, uma profissão ainda de prestígio, pelo menos como ponte, antes de seguir o destino manifesto da política.
Como filho de um funcionário de carreira da União Europeia, com o nome insuportavelmente elitista de Alexander Boris de Pfeffel Johnson, o novo primeiro-ministro nasceu em Nova York, fez o primeiro grau na escola belga da casta europeísta e foi prefeito de Londres duas vezes com uma clássica agenda cosmopolita.
Fortaleceu Londres como cidade global e, no varejo, ancorou sua imagem num programa de dar arrepios a qualquer direitista de raiz: o cicloativismo.
“Todo mundo” das classes dirigentes onde Boris circula morreu de dar risada quando Michael Gove, seu “frenemy” predileto, diminuiu as chances, que já não eram grandes, de ganhar a eleição interna do partido quando reconheceu ter cheirado cocaína “várias vezes” em festas num passado nem tão distante.
Se perguntassem a Boris? Bem, não haveria resposta. Ele focou totalmente na mensagem eleitoral e não desviou um milímetro — uma raridade, considerando-se seu perfil indisciplinado e falastrão.
Contar piadas, geralmente às próprias custas, é um sinal de classe social superior na Inglaterra e talvez uma compulsão de Boris. Da mesma forma que se fazer de palhaço e aparecer com roupas ridículas ou desleixadas — nem a namorada nova, Carrie Symonds, conseguiu evitar que, em seu dia de glória, exibisse os punhos da camisa faltando abotoar um botão.
GREGO ANTIGO
Existem os riquinhos engomados, de punhos de renda e ternos de Saville Row, como David Cameron, e os riquinhos relaxados, de punhos desabotoados, como Boris. Em geral, o povão prefere os segundos.
O esnobismo invertido permite que a irmã dele, por exemplo, tenha ironizado quando Boris defendeu o uso do inglês por todos os residentes no Reino.
“Lá em casa, nós falávamos grego antigo quando éramos crianças”, disse Rachel Johnson. Ela aderiu ao partido Change UK , que é contra o Brexit, e tentou uma vaga no Parlamento Europeu.
Detalhe: Boris Johnson realmente fala grego antigo, um dos cursos mais puxados do Balliol College, de Oxford.
Foi o Brexit que propeliu Boris de conservador excêntrico e populista a inimigo mortal das esquerdas.
E inimigo perigoso: foi vital para a vitória do Brexit, derrotou todos os prognósticos de que se autodestruiria antes de chegar a primeiro-ministro e ainda tem a possibilidade, que ninguém pode cravar se será testada, de ganhar uma eleição geral.
A imagem mais tola dele foi pintada na série Brexit, onde aparece como um apalermado sem noção. Detalhe: a série mostra o estrategista Dominic Cummings, interpretado por Benedict Cumberbatch, como único responsável pela campanha vencedora.
Na série, Cummings supostamente se arrepende pela campanha, embora na vida real tenha entrado para o novo governo: uma tacada de Boris Johnson.
Ele também levou três rivais da disputa interna: Sajid Javid, o novo ministro das Finanças, além de Dominic Raab e o próprio Michael Grove. Relevou o fato de que Gove apunhalou-o pelas costas na eleição que todo mundo gostaria de esquecer, a de Theresa May.
Jornais de esquerda como o Guardian estão surtados com Boris e as apresentadoras da BBC, também conhecida como BBzeera, atingiram novos níveis de entortamento de boca ao longo dos últimos e triunfais dias.
É claro que o teste da realidade começa imediatamente. Boris tem 99 dias para resolver a encrenca do Brexit.
Chamá-lo de islamofóbico ou sexista não vai ajudar a entender melhor como isso pode – ou não – acontecer.
Embora ele realmente seja sexista no sentido atual da palavra: gosta de sexo e não necessariamente com a esposa.
Talvez, bem hipoteticamente, isso contribua para sua popularidade entre a massa.
Um conservador esclarecido e moderno, com voto, seria realmente um perigo.
Só falta um Brexit que dê certo. Ou, pelo menos, não dê formidavelmente errado.