Palavras e pessoas que fizeram de 2020 um ano como nenhum outro
A pandemia, os protestos nos Estados Unidos e a eleição de um novo presidente introduziram no vocabulário global uma quantidade inédita de novidades
De A (de ajuda emergencial) a Z (de Zoom, o aplicativo de comunicação por vídeo online), as palavras que entraram para a linguagem corrente tiveram uma proliferação viral nesse ano em que todos nos tornamos epidemiologistas amadores e usuários profissionais de neologismos.
“Nunca vivi um ano como o que acabamos de ter”, resumiu Casper Grathwohl, o homem à frente da equipe de Oxford que escolhe a palavra do ano.
“É sem precedentes e irônico que 2020, o ano que nos deixou sem palavras, tenha tido novas palavras como nenhum outro”.
Um resumo, em ordem alfabética, dessas novas palavras, expressões e personagens forma um panorama impressionante do impacto do vírus e das outras novidades de 2020 nas nossas vidas, muitas vezes vindas diretamente do inglês, sem dar tempo para traduções e adaptações.
1- Auxílio emergencial foi, por motivos óbvios, o campeão de buscas no Brasil.
As remessas de dinheiro dos cofres públicos direto para cidadãos necessitados e empresas sufocadas ressuscitaram a proposta da renda básica universal – e esperanças de reeleição dos signatários dos cheques do governo (não funcionou para Donald Trump).
No ano em que todos viramos um pouco keynesianos, a ideia de uma Bolsa Keynes continua pairando no horizonte, mesmo que a árvore que dá dinheiro ainda não tenha sido encontrada.
2- Anders Tegnell, o “epidemiologista de Estado” da Suécia, seu título oficial, conseguiu impressionar até no Brasil, com seus três ministros da Saúde em um ano.
Tegnell virou, sem intenção, o protótipo dos militantes do anticonfinamento (outro neologismo) devido à sua política de controles moderados da mobilidade da população.
Com a segunda onda castigando a Suécia, sem sinal da imunidade de grupo (mais um) que o sistema menos severo favoreceria, ele sumiu do mapa.
Quem está falando pelo país é mesmo o primeiro-ministro Stefan Löfven e até o rei Carl Gustav, obrigatoriamente calado sobre questões políticas, lamentou as mais de oito mil mortes na Suécia.
Detalhe: a total autonomia das agências estatais é um conceito que existe desde o século 17 para bloquear possibilidades de corrupção.
Na Suécia, não existem ministros com a chave do cofre. Mas existem acertos e fracassos, como em qualquer outro lugar.
3- Black Lives Matter. Quem não conhecia, passou a conhecer.
A fechadíssima organização, que se descreve como “um movimento político e social descentralizado”, segue princípios ideológicos marxistas e da teoria crítica da raça (TCR, para os íntimos).
Embora suas três fundadoras não tenham aparecido em nenhum momento, o “Vidas Negras Importam”, como passou a ser traduzido, teve uma explosão espetacular com as ondas de protesto desencadeadas a partir da morte de George Floyd quando era detido na rua por policiais em Minneapolis.
O modelo colou em outros países, inclusive, embrionicamente, no Brasil.
4- Coronavírus, Covid-19, confinamento, cloroquina: a letra C foi a mais prolífera do ano do vírus.
Por ser mais sintética, a palavra “Covid” se transformou em doença, vírus, praga e tudo o mais relacionado ao fenômeno.
Apesar das tentativas, a palavra que não emplacou foi “covidiotas”, embora não tenham faltado exemplos de pessoas famosas que foram a festas e outras comemorações, incluindo o governador da Califórnia, Gavin Newsom (jantar de aniversário de um amigo lobista), e a cantora britânica Rita Ora (festa de aniversário para si mesma, com trinta convidados).
5- Cancelar. Acabar, silenciar, derrubar, enterrar, cassar, eliminar, exterminar do mundo virtual, e às vezes do real também, todo e qualquer elemento que ouse pensar diferente do dogma progressista.
O método organizado consiste em organizar comitês – em universidades, editoras de livros e redações de jornal – para pedir a cabeça dos desviantes.
Em geral, conseguem.
Também vale para estátuas, derrubadas ao pé da letra, de Cristóvão Colombo a Winston Churchill (este “apenas” pichado e colocado sob proteção policial).
6- Circuit breaker, o mecanismo de suspensão temporária de negócios nas bolsas quando as quedas batem em 10%, ativado seis vezes no sombrio mês de março.
Entre as más notícias (expansão da pandemia, petróleo em derrocada, recessão) de março, com queda de oito mil pontos no Dow Jones, e as esperançosas novidades de dezembro (vacinas, equipe ministerial sem maluquices de Joe Biden) a recuperação bateu em trinta mil pontos.
Dá vontade de esquecer o pesadelo, mas ainda estão marcados a ferro e fogo os seis trilhões de dólares que os mercados perderam nos últimos seis dias de fevereiro.
A expressão também vazou do mercado financeiro para o mundo do vírus, significando um rápido e estrito confinamento para tentar “quebrar” o ciclo das contaminações.
7. Desfinanciamento. Em inglês, é mais sintético: “defund”. A palavra de ordem mais constante das manifestações inspiradas pelo Black Lives Matter equivalente, na prática, a cortar o orçamento dos organismos policiais.
O radicalismo, apoiado por vereadores e prefeitos democratas em algumas cidades, obrigou Joe Biden a declarar que não apoiava de jeito nenhum a extinção da polícia.
Agora que foi eleito, a ver o que acontece com sua proposta de colocar “um psicólogo ou um psiquiatra” em todas as ocorrências policiais. Um palpite: vai ficar no capítulo, inesgotável, de propostas de campanha não cumpridas.
8. Elon Musk. Tornar-se o segundo homem mais rico do mundo em plena pandemia, com a fortuna saltando para 152,5 bilhões de dólares (só Jeff Bezos fica à frente) não foi o único motivo de celebridade global para o exótico gênio da SpaceX e da Tesla.
Ele também teve um filho chamado X Æ A-12. Mas podem chamar de X.
Dificilmente alguém vai conseguir superá-lo em termos de nomes bizarros para os filhos.
9- Kamala Harris. A vice-presidente eleita dos Estados Unidos é competente, exuberante e ligeiramente ameaçadora para o quase octogenário Joe Biden.
Por causa do exotismo do nome, indiano como sua mãe, passou o ano explicando como é pronunciado: Kámala.
Podem apostar que “Kámala” receberá uma missão especial de Biden, à altura da primeira mulher, e de cor (ou negra, dependendo do vocabulário politicamente correto de cada país), a ser eleita vice-presidente.
E que está pensando naquilo: a presidência em 2024.
10- Lockdown. Infiltrou-se do inglês para o vocabulário mundial e foi eleita a palavra do ano pela equipe do dicionário Collins.
“Escolhemos a palavra lockdown porque ela resume a experiência compartilhada de bilhões de pessoas que tiveram que restringir suas vidas para conter o vírus”, disse a consultora de conteúdo Helen Newstead.
“O lockdown afetou o modo como trabalhamos, estudamos, compramos e interagimos socialmente”.
“Não é uma palavra do ano a ser celebrada, mas talvez a que melhor resume o ano para a maioria do mundo”.
Os confinados são obrigados a concordar.
11- Pandemia. Grego para “todos” e “povos”, inferno para todos nós e palavra do ano para o Merriam Webster.
Em 11 de março, quando a Organização Mundial de Saúde declarou oficialmente que o mundo enfrentava uma pandemia, as buscas pela palavra aumentaram 115.806%.
Outras palavras e expressões registradas pelo Merriam foram assintomático, quarentena, distanciamento social, imunidade de rebanho e achatar a curva. Ou o sombreiro, por causa do formato de chapéu mexicano da linha mais acentuada das contaminações fora de controle.
12- Respiradores. O termo simplificado para ventilação mecânica, também saído do inglês, ocupou os leigos – e políticos aproveitadores – logo no começo da pandemia, quando sua necessidade parecia vital para a sobrevivência dos doentes mais graves.
Submetidos a um aprendizado intenso e sofrido, médicos de todo o mundo foram entendendo que, em uma parte dos casos, a intubação (outra palavra que caiu no domínio leigo) deveria ser evitada para melhorar a sobrevivência dos pacientes.
Num estudo feito na Inglaterra, as chances de morte dos pacientes em UTI caíram de 43% para 34% à medida em que a ventilação mecânica diminuiu.
O desequilíbrio é atribuído à diferença entre a respiração natural, quando os pulmões “chupam” o ar – pressão negativa – e a artificial, em que o oxigênio é bombeado para dentro – pressão positiva.
Obviamente, existem os casos em que a respiração artificial é a única forma de salvar vidas.
13- Sopa de letras.
“Se você não fizer gestos barreira e usar EPI, corre o risco de pegar SARS-CoV-2 e baixar UTI. Isso se não for a variante VUI 202012/01”
14- Supercontagiadores. O caso dos portadores que infectam uma grande quantidade tem até nome na epidemiologia, a regra dos 80/20. Ou seja, 80% dos casos têm origem em apenas 20% dos infectados.
Alguns especialistas acham que a proporção é mais desequilibrada ainda: 10% são responsáveis por 90% dos contágios.
Um dos casos mais conhecidos: o do navio de cruzeiro Diamond Princess, colocado sob quarentena num porto do Japão enquanto 700 de seus 4 000 passageiros e tripulantes enfrentavam o contágio.
Outro: uma sul-coreana identificada apenas como “paciente número 31” que foi a vários cultos numa igreja evangélica onde o número de frequentadores contaminados chegou a cinco mil pessoas.
Os supercontagiadores são considerados uma característica comum da família dos coronavírus.
15- Vacinas (e os antivacinas). Ganhamos uma intimidade com elas nunca vista entre o público leigo.
“Você preferiria tomar a da Pfizer, a de Oxford, a da Moderna ou a da Sinovac?”.
16- “Woke”. A palavra em inglês, originalmente significando acordado ou desperto, define os conscientizados ou politizados, principalmente quando são homens brancos hétero e fazem autocrítica em relação a aspectos do racismo e do feminismo, tal como existem na atual onda predominante.
O príncipe Harry, que largou a família real e o seu país para uma nova (e lucrativa) vida com a mulher nos Estados Unidos, foi uma das encarnações do “despertar” para o racismo (estrutural, evidentemente).
“Quando você entra numa loja com seus filhos e só vê bonecas brancas, você sequer pensa: ‘Nossa, isso é estranho, não tem nem uma boneca negra aqui?’”, disse.
Depois ele reclama quando é considerado bobo.
Mais definitivo foi o marido da tenista Serena Williams.
Alexis Ohanian, descendente de armênios por parte de pai, pediu demissão da direção do Reddit, o agregador de debates sociais do qual foi um dos fundadores, propondo que um candidato (ou candidata) negro ocupasse a vaga.
“Estou fazendo isso como pai que precisa ser capaz de dar uma resposta a sua filha negra quando ela perguntar: ‘E o que você fez?’”.
17- Wuhan. Como tantas outras coisas, o marco zero da pandemia foi politizado. Uma parte da direita americana passou a dizer “o vírus de Wuhan”, para atribuí-lo diretamente à China, mas a expressão não pegou.
18- Zoom. Ironicamente, ou talvez num sinal dos tempos, o aplicativo de reuniões virtuais, foi criado por um chinês naturalizado americano, Eric Yuan.
Obrigatório para o trabalho ou o estudo remoto, o Zoom é uma história de sucesso que reúne o melhor dos dois mundos, a América e a China, em termos de estudo, perseverança, trabalho, criatividade, dedicação e recompensa.
Formado em matemática aplicada e geologia (como os pais), Yuan mal falava inglês e só na nona vez conseguiu o visto para os Estados Unidos.
O Zoom abriu o capital em 2019 e explodiu no ano da pandemia, com 722% de valorização na bolsa.
A fortuna pessoal de Eric Yuan subiu 360%, para 16,4 bilhões de dólares.
“Eu nunca imaginei que, da noite para o dia, o mundo todo fosse estar usando o Zoom”, disse ele sobre o fenômeno.
“Infelizmente, não estávamos preparados, mentalmente e em termos de estratégia”.
A frase pode migrar para diretamente para o estado do mundo diante do vírus que mudou nossas vidas e nosso vocabulário.