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O teste de Miller: três regras básicas para definir obscenidade

E uma pergunta mais básica ainda : qual é a parte difícil de entender o erro de colocar uma criança de quatro anos para “interagir” com homem nu?

Por Vilma Gryzinski 30 set 2017, 17h19

Outra: qual é a parte difícil de entender a legitimidade de reações negativas que nada têm a ver com “a cultura do ódio e intimidação à liberdade de expressão”?

Mais uma: qual é a parte difícil de pedir desculpas pelo erro involuntário que envolveu a presença de uma criança durante uma performance artística, do tipo que existe há décadas e pode perfeitamente ser assistida por adultos em idade de consentimento, mas provoca repúdio quando abrange menores?

A recente performance, o fechamento antecipado de uma exibição no Rio Grande do Sul e a morte de Hugh Hefner destamparam discussões necessárias sobre a livre manifestação artística.

Quem resolve se existem e quais são os limites dessa manifestação é o conjunto formado por representantes eleitos, elementos do judiciário e os cidadãos em geral.

Ao contrário do que fazem supor os entendidos em arte, categoria que subitamente proliferou, decisões desse tipo não avançam como uma flecha que sai das trevas do puritanismo atrasado e corre em direção a um progresso avançado de liberdade absoluta.

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Um exemplo: hoje, seriam impossíveis, no grande circuito, filmes dos anos setenta como Taxi Driver e Pretty Baby. Ambos mostram meninas de doze no papel de prostitutas.

A primeira é interpretada por Jody Foster, que só muitos anos depois falou sobre o constrangimento durante as filmagens, quando não entendia instruções como “abra o zíper dele”. A segunda é Brooke Shields, no papel da menina virgem leiloada num bordel.

Os dois filmes são clássicos do cinema, um dirigido por Martin Scorcese, outro por Louis Malle – ao qual voltaremos mais adiante .

O que mudou entre os anos setenta, quando quebrar tabus era inovador e celebrado, e hoje? O cinema nem de longe ficou mais obscurantista – ao contrário, é difícil encontrar atualmente tabus para quebrar.

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Mas também ganharam peso conceitos como o de que a sociedade não aceita que meninas de doze anos sejam apresentadas como objeto sexual, mesmo em filmes com diretores aclamados e sensíveis. A rejeição vale para as personagens e para as próprias atrizes.

Também se estabeleceu um certo consenso de que vestir mulheres adultas com maiô e adereços de coelha, colocando-as para servir drinques a clientes, com os rabinhos empinados, não é exatamente uma forma de promoção da liberdade e igualdade entre os sexos.

(“Ele é um perfeito cavalheiro e trata a gente bem, mesmo quem não tiver dormido com ele”, na inesquecível descrição de um cliente ouvida pela feminista Gloria Steinem quando se “infiltrou” como coelhinha nos clubes criados por Hugh Hefner).

As definições de abuso sexual ficaram mais estritas. Em alguns casos, ao ponto de exagero, como em universidade americanas onde fundamentos legais irrenunciáveis, como presunção de inocência e tratamento imparcial, abriram caminho a acusações de estupro distorcidas, imaginárias ou simplesmente forjadas.

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O universo infinito da internet, com os imensos buracos negros de perversidade e abuso, influenciou e continua a influenciar as atitudes tanto das sociedades em geral quanto dos muitos braços da justiça.

A quantidade e a monstruosidade de abusos contra crianças expostos pela internet certamente contribuem para deixar pais mais sensibilizados e preocupados – e reagir com indignação diante de um episódio como o da performance que envolveu uma menina pequena.

Colocar estas reações no balaio do obscurantismo indiscriminado indica a falta de conexão com a realidade das elites que acreditam dominar os debates públicos.

A internet também tornou mais difícil aplicar um dos princípios do “teste de Miller”, como ficou conhecida uma decisão de 1973 da Suprema Corte americana sobre as sempre cambiantes definições de obscenidade.

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As decisões a respeito sempre são analisadas à luz da Primeira Emenda, o primeiro artigo da constituição americana. Com sua genial e original linguagem, ela não diz que é livre a manifestação de expressão, imprensa, culto etc, mas sim que “o Congresso não passará nenhuma lei” pertinente a estes pilares das liberdades públicas.

Mas o que não se enquadra na Primeira Emenda? Pornografia infantil, por exemplo. Ou obscenidade, tal como definida pelos critérios estabelecidos no julgamento do caso de Marvin Miller, preso por distribuir material pornográfico por correio a emissários aleatórios.

São três os critérios estabelecidos pela Suprema Corte e todos precisam ser aplicados. Primeiro, se apelar, como um todo, para o interesse lúbrico, tal como definido pelo cidadão médio aplicando padrões da sua comunidade. Segundo, se mostrar conduta sexual ou funções escatológicas de maneira patentemente ofensiva. Terceiro, se a obra como um todo não tiver valor literário, artístico, político ou científico.

É uma decisão complexa e até contraditória. O cidadão médio, aplicando padrões locais, dificilmente tem condições de avaliar com imparcialidade todos os valores mencionados.

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Mas o fato de que seja um dos pilares do teste de Miller demonstra a importância de levar em consideração as opiniões das pessoas comuns e do contexto social em que vivem.

Cidadãos comuns também podem surpreender. Os jurados de um caso famoso, o do processo contra o museu de Cincinatti que mostrava as fotos barra pesada, entre aquelas flores fálicas, de Robert Mapplethorpe, rejeitaram todas as acusações.

Isso foi em 1990. Até hoje é aconselhável que pais saibam com o que estão lidando se levarem crianças para ver Mapplethorpe.

“Eu sei o que é quando vejo”, disse o juiz Potter Stewart, no que é talvez a frase mais popularizada de um integrante da Suprema Corte em todos os tempos. A referência era sobre a distinção entre obscenidade, que Stewart considerava protegida pela Primeira Emenda, e pornografia pesada.

A opinião foi emitida no caso do gerente de uma sala de cinema preso e multado por exibir o filme Os Amantes, do mesmo Louis Malle que depois filmaria Pretty Baby. Potter Stewart concluiu que o filme não se enquadrava na categoria pornográfica. Entre nove juízes, houve cinco opiniões diferentes, numa demonstração das complexidades envolvidas.

Desqualificar como atrasados obscurantistas todos os que “sabem o que é” quando veem uma criança participar de performance com um adulto nu, mesmo que a intenção original não fosse erotizante, é ignorar essas complexidades.

O abismo que vai sendo cavado entre as elites bem pensantes, que consideram “saber o que é bom”, e as grandes camadas que “sabem o que é ruim”, é um terreno fértil para oportunistas.

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