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Por Vilma Gryzinski
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O que aconteceu com os soviéticos depois que caiu o Muro

Bronca, humilhação e roubalheira envolveram os militares baseados na Alemanha Oriental, os “amigos”, no discurso oficial, e na prática, detestados donos

Por Vilma Gryzinski
10 nov 2019, 08h45

Mikhail Gorbachev foi dormir com o Muro de Berlim intato  na noite de 9 de novembro de 1989. 

Devido à diferença de fuso horário, o líder soviético não acompanhou os acontecimentos quase alucinantes, em sua simplicidade e em sua audácia, que levaram à queda do Muro antes do previsto.

Seus assessores não acharam o assunto suficientemente importante para acordá-lo, mesmo que qualquer criança acima dos dez anos fosse capaz de perceber, só de assistir a televisão, que a roda da história tinha dado um giro gigantesco.

Se tivesse sido acordado, faria alguma diferença?

Provavelmente não, mas também não é impossível garantir. Talvez uma transição menos traumática para os 338 mil militares, fora famíliares, estacionados na Alemanha Oriental. 

Que a União Soviética não iria interferir militarmente, como fez nos tempos negros do stalinismo e da “doutrina Brejnev”, já estava mais do que decidido. 

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Gorbi, hilf uns”, pediram manifestantes quando Gorbachev, o inesperado líder da abertura soviética, tinha visitado a Alemanha Oriental apenas um mês antes da queda do Muro. 

“Gorbi, ajuda a gente”.

Ele respondeu, indiretamente: “A vida castiga os que chegam atrasados”. 

Metáfora, sim, mas arrasadora para  homem que estava a seu lado, Erich Honecker. Em questão de dias, o suspostamente eterno líder comunista alemão já era.

A história estava em marca.

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Polônia primeiro, e depois Hungria, já estavam descolando do bloco. 

No 9 de novembro, o primeiro-ministro alemão, Helmut Kohl, por sinal, estava na Polônia, em visita a um verdadeiro milagre vivo: Lech Walesa , o líder do Solidariedade, já consagrado como o maior nome do pós-comunismo, que seria eleito presidente um ano depois.

Kohl comemorou, discretamente, com espumante da Crimeia, a bebida predileta do georgiano Josef Stálin, o homem que havia vencido a Alemanha nazista e reduzido a parte que lhe coube depois da vitória a um estado equivalente ao de servidão eterna.

Em 10 de novembro de 1989, na cidade de Dresden, um certo Vladimir Putin, um simples major da KGB, não tinha nada a comemorar.

Fardado, pistola no coldre, juntou-se ao grupo que queimava todos os documentos secretos da base. 

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“Queimamos tanto que a fornalha não aguentou”, contou depois, quando já havia, em muitos sentidos, restaurado o orgulho nacional e recuperado a devastação econômica que a autodissolução da União Soviética, resultado inevitável da queda do Muro, trariam apenas dois anos depois.

Uma ironia que certamente escapou a Putin: gerações e gerações de países do cinturão russo, em especial na Polônia, haviam queimado documentos comprometedores na fornalha – liberdade, independência – desde a época do império czarista. 

Fugiam das espadas dos cossacos, depois das pistolas da NKVD, do exílio, da tortura, do tiro na nuca, dos fuzilamentos, dos campos da Sibéria onde tanto eram mandados e tão poucos saíam.

CIDADE PROIBIDA

Nada disso aconteceu com o Grupo Soviético de Forças, o nome já mais neutro com que havia 

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sido rebatizado o contingente na Alemanha Oriental – fora um pedaço da Polônia, que tinha sido alemão e repassado no pós-guerra.

Eram quase 340 mil militares, mais 208 mil familiares e funcionários civis. As tropas viviam 777 instalações usadas como quartéis.

 O mais conhecido é o de Wünsdorf, chamado de cidade proibida, um ex-QG nazista preservado embora vazio e abandonado. 

Desde as estátuas de Lênin e Marx até as piscinas vazias do ginásio e a pintura descascada, lembra em tudo cenas de “Chernobyl”, a série sobre o cidade-fantasma ucraniana, evacuada e nunca mais ocupada depois do pavoroso acidente na usina nuclear.

Imediatamente depois da queda do Muro, começou a roubalheira. Desde pregos até mísseis, era possível comprar qualquer coisa. As próprias bases eram dilapidadas a ponto da fiação elétrica ser arrancada das paredes.

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Tinha muita coisa para roubar. Só de tanques, eram 4 200, foram 8200 blindados, 106 veículos motorizados, 690 aeronaves, 680 helicópteros. “Limpar” helicópteros de todos os equipamentos e vender tudo no mercado negro virou prática comum.

Os últimos soldados saíram em 31 de agosto de 1994, com um desfile final para preservar as aparências. Voltavam para um país que não existia mais, levando o que podiam. 

Dizem que Vladimir Putin amarrou uma lava-roupas no teto do carro em que voltou para a Rússia, com a mulher e as duas filhas.

Excepcionalmente, subiu na KGB e na política, indo de vice-prefeito de São Petersburgo, já rebatizada com o nome original, jogando o Leningrado no lixo da história. Em uma década, chegou a presidente. 

Considerou depois que a dissolução da União Soviética foi “a maior catástrofe do século XX”, substituiu o marxismo-leninismo pelo nacionalismo e pode ser considerado um dos poucos líderes mundiais que tem um plano de longo prazo.

No curto prazo, os militares soviéticos na Alemanha Oriental estavam desmoralizados e humilhados, mas em situação melhor do que seus compatriotas ficariam.

A Alemanha, que seria reunificada em apenas onze meses, assumiu o pagamento da tropa, antes feito pelo lado comunista.

De repente, os soviéticos passaram a receber soldos em moeda forte, ainda o marco alemão. 

Eram 475 marcos para um oficial, uma quantia jamais vista. 

Com bolsos fundos e interesse em não ofender um país cheio de armas nucleares que poderia procrastinar a retirada, a Alemanha também assumiu os custos não só da repatriação da tropa como da construção de vilas militares.

Problema: o dinheiro foi sistematicamente desviado e as tropas continuaram a ser enviadas para acampamentos no meio do nada, com barracas furadas em pleno inverno, entre outras instalações precárias.

Era bem melhor do que o regime stalinista fez com os soviéticos que se transformaram em prisioneiros de guerra da Alemanha nazista (57% sequer saíram vivos dos campos alemães, contra menos de 3% de presos ingleses e americanos).

Mais de 1,5 milhão de prisioneiros soviéticos foram mandados primeiro para “campos de triagem” comandados pela NKVD, a polícia política que depois se transformaria na KGB.

Cerca de 230 mil fizeram o circuito completo: prisão na Alemanha, “triagem” da NKVD e campos de trabalhos forçados na Sibéria, por suspeita de colaboração com o inimigo ou, simplesmente, de falta de fervor ideológico.

No pós-1989, os soldados soviéticos ainda na Alemanha só sofriam de bronca e incerteza sobre o futuro.

CARECA DESGRAÇADO”

Numa reportagem espetacular de dezembro de 1990, o New York Times. Um rápido resumo: “A disciplina está desmoronando e os soldos pagos em marcos alemães alimentam a corrupção, a ganância e o crime”.

“Tudo está à venda – quepes, fardas, insígnias e até armas. Oficiais oferecerem grandes somas em marcos para se casar com alemãs e continuar na Alemanha. Algumas esposas de oficiais oferecem a si mesmas por alguns marcos.”

Desprezo e sarcasmo eram as reações mais comuns dos ex-servos alemães em relação aos “amigos” soviéticos, como dizia o antigo discurso oficial, repetido com ironia.

Aconteceram alguns episódios de brigas, surras e até mortes, mas a maioria das baixas era provocada pelos soviéticos contra si mesmos, em acidentes e “trotes”, uma tradição brutal que se tornou pior nas circunstâncias.

O correspondente falou com um oficial soviético que começou com o discurso oficial – “Nós nos alegramos pela reunificação dos alemães – e, à medida em que as doses de vodka se multiplicavam, foi ficando mais sincero.

“Aquele desgraçado careca deixou o país desmoronar”, disse o oficial, referindo-se a Mikhail Gorbachev. A palavra que usou não foi exatamente desgraçado.

O comandante supremo das forças soviética na Alemanha, contrário a fazer as malas e deixar a história rolar, já havia sido substituído. Tinha se enrolado num negócio clandestinos de venda de mísseis de arrepiar os poucos cabelos do careca ou de quem estivesse no lugar dele.

Trinta anos depois, seja qual for o veredicto ideológico, os soldados soviéticos estão muito melhor.

Descendentes dos homens – e centenas de milhares de mulheres – que atravessaram vários invernos forrando as botas com jornais e entraram vitoriosos na Alemanha, tendo derrubado o nazismo e sobrevivido a seus próprios e cruéis líderes, no que já foi chamada de “a guerra do Mal contra o Mal”, livraram-se do peso de oprimir países que os odiavam.

Mesmo que a elite comunista dirigente se curvasse, louvasse os “amigos” e seguisse suas ordens, os soviéticos sabiam o que o povo pensava deles.

“Queremos ser livres, não escrevos”, gritavam os manifestantes que aderiram à greve operária de 1953.

No paraíso dos trabalhadores, nominalmente criado em seu nome e em seu benefício, protestavam contra um corte no salário dos trabalhadores da construção civil se não atingissem as cotas de produção estabelecidas por Moscou.

Aí os tanques soviéticos saíram as ruas.

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