Fenômeno: Trump perdeu eleição, mas ganhou capital político
É incrível que um presidente que não se reelegeu continue a ser assunto tão dominante - e ele não pretende deixar de explorar isso
Donald Trump ainda tem três semanas para praticar o sagrado jus esperneandi.
E pretende usar cada minuto desse prazo, que se encerra quando o Colégio Eleitoral der oficialmente a vitória a Joe Biden.
Ou será que não se encerra?
Com Trump, é difícil cravar uma alternativa.
Para qualquer político normal, seria devastador o vexame de não reconhecer, tão elegantemente, quanto possível – lembram-se da cara de velório de Barack Obama em 2016? – a vitória do adversário e abrir as portas para uma transição civilizada.
Trump, que nem político é, opera em outra sintonia. E joga para a base, ardorosamente seduzida por ele.
Só um exemplo: segundo uma pesquisa da Economist, 74% dos republicanos acreditam que houve “muitas” fraudes na eleição – exatamente como dizem Trump e companhia, embora sem terem apresentado indícios substanciais que corroborem a acusação.
Apenas 56% têm uma confiança razoável de que seus votos foram computados corretamente.
Menos de 20% acham que a vitória de Joe Biden foi legítima.
Almas mais sensíveis pedem os sais diante de números assim, angustiados com a fidelidade dos trumpistas a um líder que, aos olhos dos adversários, é um palhaço sinistro e prejudicial aos interesses da democracia americana.
Esta fidelidade faz de Trump um fenômeno talvez da mesma dimensão que alcançou quando conseguiu a vitória dada por completamente impossível em 2016.
Mesmo derrotado, ele teve em 3 de novembro quase dez milhões de votos a mais do que em 2016, num total de 73 milhões.
O aumento foi particularmente importante entre eleitores negros do sexo masculino: 19% votaram nele, contra 13% na última eleição. Em 40 dos distritos eleitorais onde os negros são maioria, a votação em Trump aumentou 8%.
Os avanços entre o eleitorado latino estão preocupando os marqueteiros democratas – obviamente, já pensando na próxima eleição.
Nos 47 municípios onde são majoritários os eleitores hispânicos – invenção americana para denominar os cidadãos originários da América Latina -, a votação em Trump aumentou 37%.
Por causa do apoio dos eleitores latinos, Trump ganhou na Flórida e no Texas, onde uma vitória de Biden era considerada provável ou possível.
Considere-se que sacudir a cabeça e dizer “são os cubanos”, esses reacionários, não explica o aumento. No Texas, a população de origem latina tem raízes predominantemente no México no na América Central.
No município de Zapata, no Texas, onde a população é 95% hispânica, Trump ganhou por 52%, contra 47% para Biden.
Manter parte ou todos esses votos pensando em 2024 não será nada fácil. Trump teria que continuar a ocupar espaços de maneira avassaladora como aconteceu durante seus quatro anos na Casa Branca.
Um tuíte provocante, intempestivo ou abilolado de um presidente é uma coisa. Um ex já fica num lugar muito menos importante e corre o pior dos riscos para uma personalidade como Trump: sumir da mídia.
O Partido Democrata fez uma frente ampla para eleger Joe Biden e o antitrumpismo motivou muitos eleitores a sair de casa só para cravar uma estaca no coração do seu odiado presidente.
Muitos eleitores também saíram de casa para votar no seu amado presidente – aliás, uma parcela continuou saindo para agitar, literalmente, a bandeira dele, um caso único de derrotado que é celebrado nas ruas.
Numa eleição sem voto obrigatório, 65% dos eleitores se deram ao trabalho de votar, uma participação excepcional.
Parece que ainda não é dessa vez que a democracia americana vai acabar.
E que Trump vai descer do topete e se comportar como os outros acham que deveria.