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Coronavírus saiu da ditadura e foi para democracias: e agora?

A coisa foi para o sul, desviou-se em direção da Áustria e da Croácia. Suíça, Barcelona, os lugares com novos infectados vão caindo como num jogo de dominós

Por Vilma Gryzinski 25 fev 2020, 18h24

Sem a mentalidade de enfrentar uma epidemia com medidas inflexíveis, como fez a China, países democráticos agora têm que mostrar serviço. E o principal deles é a Itália.

Jesus, Maria e José nos protejam pensam os mais cínicos, ou quem sabe informados sobre a capacidade organizacional da península.

Em compensação, o nível de formação literária é incomparável.

Talvez relembrando o Decamerão, a obra prima e provocativa de Bocaccio, onde dez jovens refugiados da Peste Negra que assolou Florença a partir de 1348 contam histórias cuja eternidade atravessa os tempos, italianos estão esvaziando as prateleiras.

Com 288 casos e sete mortes, o índice mais alto fora da Ásia, a Itália e seus vizinhos estão com um dilema daqueles.

O isolamento de cidadezinhas em torno de Bergamo, onde o paciente zero, vindo da China, propagou a doença respiratória, já foi superado.

A coisa foi para o sul, desviou-se em direção da Áustria e da Croácia. Suíça, Barcelona, os lugares com novos infectados vão caindo como num jogo de dominós.

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Na China, a demora em identificar a gravidade e a rapidez do contágio foi catastrófica para Wuhan.

Mas quando caiu a ficha, o país dispunha de um arsenal único. Primeiro, a própria natureza de um regime autoritário, onde manda quem pode e obedece quem tem juízo, sem contraditório nem controle de uma imprensa livre.

Segundo, o nível de tecnologia alcançado pelo país – em boa parte, justamente, para manter a estrutura autoritária.

Alguém imagina drones italianos operados por carabinieri com seus uniformes impecáveis obrigando os famosamente independentes italianos a não sair de casa?

Pois é. Pouca gente.

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Mas o medo bateu e, além das prateleiras, esvaziou as ruas.

Primeiro, encher a despensa. Depois, pensar no que mais é possível fazer. Quem não teria exatamente a mesma reação?

Bocaccio descreveu em detalhes as respostas dos florentinos quando a Peste Negra chegou à cidade, em 1348.

Os ratos trazidos nos porões dos navios mercantes hospedavam as pulgas e as pulgas hospedavam a bactéria Yersinia pestis. E a bactéria hospedava a morte.

Ao entrar, via picadas, em corpos humanos, alojava-se nos gânglios linfáticos mais próximos. E começava a se reproduzir.

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O nome peste bubônica vem do formato que os gânglios tomavam.

Esse caminho ainda não era conhecido pela ciência da época, mas seu resultado fatais sim.

“Tanto em homens quanto em mulheres, começava com certos inchaços, na virilha ou na axila.

Ficavam com o tamanho de uma maçã pequena ou de um ovo, e eram vulgarmente chamados de tumores”, descreveu Bocaccio.

“Em curto espaço de tempo, estes tumores se espalhavam por todo o corpo. De repente, todos os sintomas mudavam e apareciam manchas negras ou roxas nos braços, nas coxas ou outras partes do corpo.”

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“Eram o sinal garantido da morte.”

As reações descritas por Bocaccio não são muito diferentes do que se veria hoje – fora os drones, as redes sociais e as bolsas de valores.

Alguns grupos se autoisolavam, consumindo moderadamente bebidas e comidas “da melhor qualidade”, mas sem permitir nenhuma discussão sobre morte e doença.

Outros saiam detonando, “de taverna em taverna”. Quem podia, deixava Florença, “onde a autoridade dos homens e de Deus havia quase desaparecido”.

A Itália, o lugar mais urbanizado da Europa, foi talvez o que mais sofreu, justamente pelas concentrações humanas maiores, ideais para a rápida propagação de uma doença que faz o coronavírus um reles resfriado.

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Na Florença de Bocaccio e outros gênios pré-renascentistas, a população caiu de 100 mil para 50 mil.

Ironicamente, há historiadores que creditam à devastação da Peste Negra uma valorização da mão de obra que permitiu a parte norte do país se descolar do resto, rejeitar superstições religiosas e sofisticar o pensamento sobre a organização social e o exercício do poder.

Em suma, os horrores da Peste Negra acabaram criando condições que impulsionaram o Renascimento.

A magnífica, antiga e historicamente cínica Itália é um laboratório do que vai acontecer em outros países ocidentais com a inevitável propagação do corona.

Na Coreia do Sul, muito mais próxima e exposta a contaminação vinda da China, já surgem algumas expressões protestos pelo fechamento de fronteiras.

É uma medida que pode ser necessária e consta dos planos de contingência de todos os países responsáveis.

Mas também é tardia.

Enquanto o ritmo de contaminação começa a diminuir na China, disparou na Coreia e deu o inesperado salto da Itália.

Comparativamente, são números, ainda, irrisórios.

Mas quem disse que humanos – sem falar nas bolsas de valores- seguem apenas parâmetros racionais?

“Era tanto o terror que irmão fugia de irmão, esposa do marido e, o que é ainda mais incomum, pai do filho”, diz Bocaccio no conto sobre a peste.

Sobre a transformação do corona em pandemia, já não há mais dúvidas.

Se ele já foi precificado pelo mercado, ainda há.

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