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Arábia Saudita: balada forte num dia, decapitações no outro

Condenação à morte dos peixes pequenos pelo assassinato de Jamal Khashoggi culmina um ano delirante que só comprovou: o dinheiro compra tudo

Por Vilma Gryzinski 24 dez 2019, 08h23

Dar a vida pelo chefe é uma força de expressão que ganhou uma interpretação sinistra na Arábia Saudita.

Cinco dos operadores que receberam a missão de matar Jamal Khashoggi, desafeto do príncipe herdeiro, e a cumpriram de forma excepcionalmente estúpida, foram condenados à morte.

Na Arábia Saudita, a sentença máxima é executada como prega a tradição islâmica, por decapitação.

Não é impossível que a pena seja eventualmente comutada, tendo cumprido a encenação de castigo exemplar.

Os cinco condenados à morte, mais onze a penas de prisão, são os paus mandados da equipe de assassinos enviada ao consulado saudita em Istambul, em 2 de outubro do ano passado.

Inclui-se entre eles o médico legista que aparece numa gravação dizendo: “Agora, vamos separar as juntas”. Ao som de uma serra elétrica.

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Sim, o consulado era todo, obviamente, grampeado. A Turquia é um dos maiores rivais da Arábia Saudita – mesmo que não fosse, todo mundo grampeia todo mundo, uma regra amplamente conhecida.

O desembarque, os deslocamentos e a viagem de volta dos assassinos trapalhões, incluindo um trajeto de despiste feito por um dos agentes com as roupas tiradas do corpo provavelmente ainda quente do morto, foram todos registrados em câmeras de segurança.

A única coisa que fizeram direito, por assim dizer, foi encarregar um colaborador local de sumir com o corpo desmembrado. O cadáver não foi encontrado até hoje – e não por falta de buscas.

Autoridades turcas, uma investigadora especial da ONU e até a CIA, todos chegaram à mesma conclusão: a ordem de matar Khashoggi, mesmo desproporcional ao dano que podia causar à imagem construída a peso de petrodólares pelo príncipe Mohammed bin Salman, partiu do mais alto nível.

Justamente o eximido no julgamento de resultado encomendado. Por “falta de provas”, livraram-se Saud al-Qathani, íntimo assessor de imagem do príncipe, e Ahmed al-Assiri, o vice-diretor do serviço de inteligência.

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Para não mencionar o próprio príncipe.

Ah, sim, a operação toda era apenas para “conduzir” Khashoggi de volta à Arábia Saudita, para ouvir uns bons conselhos e mudar de vida. Escapou ao controle porque ele começou a gritar, recebeu uma injeção tipo mata-leão, a coisa deu errado etc etc.

Mais um pouco, seria condenado pelo próprio assassinato.

Confiante no seu taco, na relevância do petróleo saudita para manter a economia mundial andando e na importância geoestratégica do país como contrapeso ao Irã, Mohammed bin Salman manteve o sangue frio, a cara de pau e os cofres abertos.

Vários de seus projetos ambiciosos foram prorrogados, diante do repúdio a um ato de barbárie tão escandaloso.

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Mas menos de um ano depois do assassinato a Aramco, a estatal do petróleo, fez um IPO – não tão bem sucedido como o planejado. Mesmo assim, saiu dele como a empresa mais valiosa do mundo, coisa de 1,7 trilhão de dólares.

A abertura de capital da Aramco faz parte de um grande plano do príncipe para reestruturar a economia saudita, contando inclusive com uma futura era pós-petróleo.

Há coisas que fazem sentido no ambicioso plano, há coisas puramente malucas. Exemplo: transformar um país onde reina a corrente mais fundamentalista da religião muçulmana num polo turístico e cultural.

Se um vizinho menor como o Dubai consegue manter exigências como o véu completo, com o rosto coberto, para as mulheres locais, conciliando-as com grandes hotéis e atrações turísticas para estrangeiros, onde biquínis e bebidas são aceitos, por que não a Arábia Saudita, muito mais rica?

Há uma longa lista de respostas negativas, inclusive a influência dos religiosos e de setores da própria população mais extremamente conservadores.

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Sempre é bom lembrar que Osama Bin Laden foi gerado no coração do sistema saudita. O próprio Jamal Khashoggi teve simpatias pela Al Qaeda, em sua versão original, antes de se transformar em defensor de uma versão islâmica da democracia.

Em compensação, a população mais jovem apoia em massa a política de abertura do príncipe e releva deslizes eventuais como matar e esquartejar um opositor.

Abrir o país a eventos esportivos e shows de música é uma novidade quase inimaginável.

Foi talvez uma ironia inconsciente trazer a elite dos DJs para um festival de música eletrônica no deserto enquanto o julgamento de araque dos assassinos de Khashoggi chegava ao fim.

Jovens acostumados a só ver isso quando viajam a outros países curtiram Steve Aoki, Afrojack e Dish Dash – as garotas inventando jeitos criativos de seguir a exigência de cobrir o rosto, inclusive com máscaras cirúrgicas pretas.

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Houve críticas, claro, às celebridades não exatamente da lista A, pagas para enfeitar eventos assim. Alessandra Ambrosio arrasou com um macacão de couro preto. Armie
Hammer e Wilmer Valderrama também receberam o cachê.

Mais surrealista do que um festival chamado MDL Beast na Arábia Saudita só a boataria de que o príncipe andou flertando com Lindsay Lohan, a estreleje americana de vida complicada que descobriu uma nova encarnação como defensora de refugiados das guerras no Oriente Médio.

“É uma amizade platônica”, respondeu o pai dela, Michael Lohan, que se divide entre atividades paternas e períodos no sistema prisional.

Só pode ser. O príncipe é casado, e da maneira mais tradicional: a esposa é da vasta rede tribal de relações familiares que sustenta a realeza nop oder e nunca, jamais aparece em público.

O marido, em compensação, superou rapidamente o período de pária que se seguiu ao assassinato de Khashoggi e voltou a aparecer.

Ah, sim, nesse ano alucinante, o Irã, acuado pelas sanções americanas, aumentou a pressão e atacou instalações petrolíferas na Arábia Saudita com drones.

Como sempre, os sauditas pediram guerra, desde que travada pelos Estados Unidos com o sacrifício de vidas americanas, claro. Donald Trump achou melhor não.

No momento, a situação está temporariamente amornada. Mas todas as condições de alta tensão continuam valendo e 2020 vai ser um ano de arrepiar.

O Irã avança aceleradamente para um portal bem mais próximo da bomba atômica, esperando assim forçar os Estados Unidos a retomar o acordo nuclear renegado.

A resposta da Arábia Saudita sempre foi fazer sua própria bomba caso o Irã não seja contido. Dinheiro para isso, tem.

São assuntos bem mais sérios de que um festival de música eletrônica.

Mas o príncipe entende muito bem que aliviar algumas das mais pesadas restrições religiosas forma uma base de apoio importante para seu projeto de poder.

A essa altura, também deve entender que mandar matar desafetos políticos em outros países também não é uma boa ideia.

Mesmo que o erro seja pago com o pescoço dos outros.

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