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Amante provoca queda do profeta do apocalipse do vírus

O estranho caso de Neil Ferguson, epidemiologista que criou o modelo com os mais terríveis prognósticos, revela paixões e disputas entre cientistas

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 6 Maio 2020, 10h19 - Publicado em 6 Maio 2020, 06h58

Saber quem está dormindo com quem é uma das mais irresistíveis tentações humanas. Tem que ser forte para não cair nela.

Mas quando quem está dormindo com quem envolve o “homem mais importante” no processo de decisões sobre o novo coronavírus, como foi definido o epidemiologista inglês Neil Ferguson, o cientista que mudou a cabeça do primeiro-ministro Boris Johnson, nem vamos tentar resistir.

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Ferguson dançou por um motivo banal, tão humano que só mesmo nessa época em que “fiscais do isolamento” estão sempre na porta ao lado para virar assunto de estado.

Ele tem uma amante, Antonia Staats, e “permitiu” – segundo o termo paternalista usado por jornais ingleses – que em pelo menos duas ocasiões ela saísse da própria casa e atravessasse Londres para encontros amorosos.

A mulher é casada, tem dois filhos, marido rico e tempo para militância em causas progressistas. Além de um casamento aberto.

O que os estranhos aos arranjos sexuais de adultos conscientes têm a ver com isso?

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O escândalo objetivo vem do fato de que Antonia rompeu as regras da quarentena, o lockdown que limita os deslocamentos à compra de produtos básicos e de exercícios, fora trabalho que não pode ser feito de casa.

Quantas outras pessoas entram num carro ou no metrô e fazem exatamente a mesma coisa? Certamente muitos milhares.

Mas nenhuma delas vai ter um encontro amoroso com o epidemiologista conhecido como Professor Lockdown por causa dos números catastróficos que seu modelo epidemiológico projetava: sem quarentena, haveria 500 mil mortos no Reino Unido, mais 2,2 milhões nos Estados Unidos e exatos 529 mil no Brasil, caso apenas os idosos fossem isolados.

Ferguson admitiu o “erro de julgamento”, no caso da amante, ao se demitir da comissão de peritos que assessora o governo – em inglês, o acrônimo é SAGE, ou sábio.

Insinuou também que, por ter tido o coronavírus logo no começo da epidemia na Inglaterra, considerava-se imune.

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“Hipócrita convencido”, foi uma das reações mais leves que ouviu.

“Cientistas como ele estão nos dizendo o que devemos fazer, mas ele está fazendo o que quer”, espetou Iain Duncan Smith, ex-líder do Partido Conservador e pouco simpático ao isolamento extremo por causa dos devastadores efeitos econômicos.

“Ele quebrou suas próprias regras. É difícil de acreditar que um homem inteligente faça isso. Além do risco de prejudicar a mensagem do governo sobre o lockdown”.

A popularidade de Ferguson, que vem amparado pela aura de sua instituição, o Imperial College,  é um fenômeno típico da estranha era criada pelo novo coronavírus. 

Epidemiologistas e matemáticos que raramente saíam de seus ambientes de pesquisa transformaram-se, subitamente, em celebridades entrevistadas continuamente e ouvidas com respeito reverente por um público desesperado por respostas.

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Ferguson é quase um clone, um pouco mais jovem, do sueco Anders Tegnell, que já virou até tatuagem. Ambos fazem o estilo professor universitário norte-europeu: óculos redondos, cabelo despenteado, camiseta que já viu dias melhores e outros indícios de total despojamento.

Ocupam os dois extremos das posições científicas – sim, não existe unicamente “a ciência”, em especial no campo da epidemiologia – sobre a pandemia.

O inglês defende a quarentena, baseado em modelos que ele mesmo criou, inclusive desenvolvendo o software, como forma de poupar vidas. Seus admiradores ressaltam que provavelmente salvou dezenas ou até centenas de milhares de pessoas da morte.

Como até a pandemia foi politizada, ele ganhou a simpatia de órgãos de esquerda, mesmo sendo colaborador científico de um governo conservador.

O sueco, que dirige o apolítico Instituto Nacional de Saúde Pública, mas orienta um governo de centro-esquerda, virou uma espécie de “grande esperança branca” da direita antiquarentena.

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Obviamente, por motivos totalmente alheios a ele. Tegnell apenas segue uma estratégia de combate a epidemias baseado na convicção – por motivos científicos – de que é menos prejudicial, no longo prazo, promover a imunidade de grupo em lugar da quarentena total.

O resultado, até agora, bateu em quase 2.900 mortes, de sete a dez vezes mais do que países comparáveis, como os outros escandinavos.

Tegnell diz que a avaliação final só poderá ser feita dentro de um ano, ou mais, quando tivermos os resultados do fim da quarentena e de uma potencial segunda onda. Os suecos continuam, majoritariamente, apoiando esse tipo de programa.

A estratégia da imunidade chegou a ser citada pelo principal assessor científico de Boris Johnson, mas foi rapidamente substituída pela quarentena. Principal motivo: as projeções apresentadas por Ferguson.

Prognosticar números catastróficos tornou-se parte do modelo desenvolvido pelo Professor Lockdown, não sem críticas. 

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As maiores procedem do modo como orientou o combate à epidemia de febre aftosa em 2001, que resultou no abate de seis milhões de animais, inclusive saudáveis, com graves prejuízos e revolta dos pecuaristas.

Ferguson também chegou a prognosticar 150 mil mortes por contaminação, por via alimentar, pela estranha doença da vaca louca, uma encefalopatia bovina. Foram menos de 200 casos fatais.

No caso da gripe aviária de 2005, falou em nada menos que 200 milhões de mortes em todo o planeta. Não chegaram a mil.

Com as dimensões monumentais do novo coronavírus, ele passou a ocupar um espaço público excepcionalmente mais visado.

Em tom calmo, ou até ligeiramente irônico, não parecia um profeta do apocalipse, mas desfilava números assustadores.

E mutantes também. Dos 500 mil mortos previstos para o Reino Unido, sem quarentena passou a 20 mil (errou: está encostando em 70 mil).

A politização do vírus não imunizou, de jeito nenhum, os cientistas. Quando um grupo coordenado pela professora Sunetra Gupta, de Oxford, apresentou outro modelo, houve uma espécie de rebelião de acadêmicos de esquerda.

“Fiquei surpresa em ver como o modelo do Imperial foi aceito de forma tão incondicional”, espetou a professora.

Detalhe: nenhum dos modelos passou pelo processo de revisão pelos pares, um dos pilares da ciência.

No calor da batalha, os processos obviamente são encurtados. 

Disputas ferozes e brigas de ego sempre fizeram parte do mundo acadêmico. Alguns dizem até que o jogo pesado da política empalidece diante das rivalidades que grassam nas universidades.

Divergências sobre uma doença nova, com tanto ainda a ser descoberto, são não só aceitáveis como desejáveis.

É uma pena Neil Ferguson tenha se dado mal não pelo que saiu de sua cabeça brilhante, embora nem sempre acertada, mas pelo que veio de seu coração (ou seja lá qual for o órgão envolvido).

Mas dificilmente ele vai sair do debate, ainda mais num momento em que nunca, na história humana, tantos cientistas se concentraram tanto num único tema. Todos nós precisamos disso.

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