A liturgia segundo Matteo: depois da praia, golpe no aliado
Como certos colegas, Salvini não está nem aí para quem demanda compostura no cargo e, de calção, armou pré-campanha populista para governar sozinho
De mojito na mão, a barriga projetando-se para fora do bermudão – pança, dizem os italianos – e os olhos fixos nos pontos X de mulheres de biquíni, Matteo Salvini fez exatamente tudo o que não se espera de um político que já é o mais importante da Itália.
Entre tocar o hino nacional na cabine de DJ de um dos barulhentos clubes de praia que lotam no verão e tirar um zilhão de fotos com admiradores, ele também fez o lance mais audacioso de sua carreira: rompeu a coalizão com o Movimento Cinco Estrelas, com quem repartia desconfortavelmente o poder.
Oficialmente, Salvini é ministro do Interior e vice-primeiro-ministro, sendo o outro Luigi Di Maio, o ex-garçom que fez muito sucesso como novidade eleitoral, em especial do sul da Itália, e poucos avanços no jogo bruto do poder.
Extraoficialmente, é quem faz chover e brilhar o sol mesmo num país de alta fragmentação política como a Itália.
Com sua personalidade, pessoal e política, dominante, Salvini quer ser consagrado nessa posição pelas urnas, numa eleição antecipada.
Daí o “tour das praias”, com a pança balançando, o Twitter bombando e o povo adorando. Pelo menos o povo que transformou o partido de Salvini de exotismo regional em fenômeno nacional.
Originalmente chamado Liga do Norte, o partido pregava o separatismo da região norte, mais desenvolvida e rica. Sua base é Milão e, mesmo tendo se reposicionado no mercado, ainda encontra sérias resistências na parte sul. Atualmente, tem 37% das preferências eleitorais.
Tendo vivido uma década sob os eflúvios do rei de todos os populismos contemporâneos, Silvio Berlusconi, muitos italianos até simpatizam com o estilo nada compatível com a liturgia do poder de Matteo Salvini.
Outros, obviamente, horrorizam-se com a vulgaridade do vice-primeiro-ministro de bermudão, e até um pouco embalado, levando um flamingo inflável para a filha brincar no mar (enquanto o filho passeava num jet ski da polícia, provocando um dos infindáveis confrontos entre jornalistas e o ministro).
Os mais velhos ainda se lembram de Aldo Moro passeando na praia de terno e gravata, poucos anos antes de ser sequestrado e assassinado pelas Brigadas Vermelhas, em 1978.
Todos os populistas, atualmente um fenômeno mais de direita, têm canais diretos de comunicação com a massa, mas os estilos diferem.
Portas fechadas
Donald Trump, o campeão de acusações de não ser “presidencial”, só tira o terno e gravata para jogar golfe em algum de seus clubes de luxo. Sua perdição é a língua solta, ao vivo ou pelo Twitter. Obviamente, também é o seu vaso conectante com a base.
O húngaro Viktor Orbán é um intelectual que faz longos e sofisticados discursos, comporta-se segundo os padrões da “velha escola” da Europa Central e produz os mais elaborados argumentos contra a imigração extra-europeia e a favor do que chama de democracia antiliberal.
Formado em estudos clássicos em Oxford, fluente em grego antigo e latim, Boris Johnson apela ao povão com o estilo desarrumado, muitas vezes deliberadamente exagerado. Como Salvini, já apareceu em roupas esportivas e calção, uma visão não muito inspiradora.
Nada, evidentemente, que se compare nem de longe ao uniforme oficial de Hugo Chávez e sua turma, os agasalhos de ginástica com as cores da bandeira venezuelana. Ou aos palavrões ditos pelo apenado de Curitiba quando ainda era tratado como o Iluminado.
O problema do populismo é justamente o sucesso de público que o estilo de seus luminares propicia, com risco de passar por cima das instituições.
Isso, obviamente, nos países onde existam instituições que mereçam ser mantidas e defendidas.
A popularidade de Matteo Salvini foi turbinada pelo modo assumido e agressivo com que ele fechou as portas de entrada para a migração em massa procedente da África.
No processo, comprou briga com todas as esquerdas, as ONGs nacionais e internacionais e a Igreja tal como representada pelo papa Francisco.
Se der um olé nos companheiros de coalizão e sair vitorioso, Salvini vai fazer um movimento contrário: brigar com a União Europeia pelo relaxamento das exigências de responsabilidade fiscal.
Irresponsabilidade fiscal é praticamente o nome do meio da Itália.
Misturar conceitos de direita e de esquerda é típico do populismo. Ainda mais quando regado a muitos mojitos e DJs detonando as picapes.
Nem é preciso dizer, mas vamos lembrar assim mesmo: os desmancha-prazeres acham que uma Itália rebelde, e como sempre na beira do buraco, pode desencadear a crise financeira universal que não para de ser prognosticada e que até agora só tem sido desmentida pelos fatos.
Quem será o arauto do fim do mundo, Matteo Salvini ou Donald Trump?
Ou o mundo ainda tem um bom fôlego para resistir?
Na Europa, só quando terminar o verão o pessoal vai pensar nisso.