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“Muita gente ficou dentro do armário e hoje é vendida como herói da resistência”, diz Carlos Heitor Cony

Raquel Carneiro No dia 1º de abril de 1964, quando a história do Brasil seria marcada pelo golpe militar, o escritor Carlos Heitor Cony estava de repouso por causa de uma cirurgia no apêndice. Apesar da fraqueza, Cony não resistiu à curiosidade de conferir a movimentação na rua e saiu de casa para testemunhar a […]

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 31 jul 2020, 04h08 - Publicado em 1 abr 2014, 13h03

Carlos-Heitor-Cony-original

Raquel Carneiro

No dia 1º de abril de 1964, quando a história do Brasil seria marcada pelo golpe militar, o escritor Carlos Heitor Cony estava de repouso por causa de uma cirurgia no apêndice. Apesar da fraqueza, Cony não resistiu à curiosidade de conferir a movimentação na rua e saiu de casa para testemunhar a tomada do Forte de Copacabana, acompanhado pelo amigo Carlos Drummond de Andrade.

Quando retornou para sua casa, Cony escreveu a crônica Da Salvação da Pátria a pedido do jornal Correio da Manhã e narrou, com tom irônico, o fato assistido. O texto foi o primeiro de muitos que viriam a ser publicados pelo escritor em oposição ao regime ditatorial que se instaurara no país. Algumas dessas crônicas, escritas naquele ano, foram reunidas no livro O Ato e o Fato: O Som e a Fúria do Que se Viu no Golpe de 1964, que a Nova Fronteira, do Grupo Ediouro, relança em abril, mês que o golpe completa 50 anos.

Para Cony, 2014 também marca seus 60 anos dedicados à literatura, e a parceria com a Nova Fronteira promete outras obras do autor em reedições de volta às livrarias.

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Cony_Ato_Fato_baixaComo os anos 1960, do início da ditadura, se relacionam com a sua obra? Meu primeiro romance foi lançado em 1958, depois eu escrevia um livro por ano até 1969. Após este período, com a ditadura, eu parei. Voltei a escrever romances só em 1995. Agora vou lançar uma série de reedições, como O Ato e o Fato. Neste livro está a crônica Da Salvação da Pátria, que foi a primeira contra o regime para o jornal Correio da Manhã. Depois, durante oito meses, eu escrevia diariamente uma crônica. Com o tempo fui aumentando o tom, deixei de fazer cenas de rua para assumir o panfleto político. Ofendi os militares, chamei o Castelo Branco de rã, o Costa e Silva de analfabeto (risos). Resultado: fui processado e preso seis vezes.

O que o senhor estava fazendo em 1º de abril de 1964? Como recebeu a notícia do golpe? Eu tinha sido operado de apendicite em 14 de março de 1964, então estava afastado da redação. Voltei para casa no dia 31 de março. Eu era vizinho do Carlos Drummond de Andrade, que me visitou no dia que sai do hospital. No dia seguinte, 1º de abril de 1964, ele me chamou para ver a movimentação que estava acontecendo na rua. Desci, levamos um guarda-chuva, e assistimos à tomada do Forte de Copacabana. No mesmo dia eu tinha que escrever uma crônica para o Correio da Manhã. Então voltei para casa e, na época, eu não fazia textos políticos, apenas cenas de ruas, que é o comum da crônica. No entanto, eu tinha assistido a uma cena de rua e escrevi sobre ela. Os jornais ficaram receosos no início, mas depois vieram outras críticas. O texto teve uma grande repercussão pelo tom de gozação.

Quais são suas memórias das passagens pela prisão? Foram cinco prisões e uma detenção, totalizando seis. A primeira foi em um processo do Costa e Silva. Depois, em 1965, participei da manifestação contra o Castelo Branco, por causa de uma reunião da OEA, na porta do Hotel Glória. Junto comigo estavam Antonio Callado, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Flávio Rangel, Mário Carneiro, Márcio Moreira Alves e Jaime Rodrigues. Claro que prisão nenhuma é vantagem, mas foi uma detenção agradável, pois estávamos juntos. Ficamos presos uns 20 dias. Flávio ficava fazendo discursos, Glauber escrevendo o roteiro de Terra em Transe. Depois fui preso em 1968, em casa. Mais tarde, no carnaval, correu a notícia que haveria uma manifestação da esquerda. Para evitar qualquer problema, prenderam por uma semana algumas pessoas. No caso, eu estava indo para praia e fui preso, sem motivos. Depois fui preso, em 1969, quando Carlos Marighella foi morto. Por fim, quando voltava de Cuba fui pego dentro do avião.

Qual era o clima entre os jornalistas e escritores naquela época? Alguns correram os riscos. Vários foram presos diversas vezes. Na literatura a mesma coisa. Quem quis escrever contra, escreveu. Pelo menos até o AI-5. Mas a maior parte engoliu a ditadura. Havia muitos dedos-duros nas redações. Depois do AI-5 a situação ficou insustentável.  O STF deixou de ser livre, não existia mais habeas corpus, começaram as torturas e as mortes. Então eu fui para Cuba em um autoexílio. A maioria de nós fez isso. Não aguentávamos mais viver aqui. Minha casa foi invadida diversas vezes, uma vez agrediram minhas duas empregadas. Éramos presos sem razão. Aconteceram os casos conhecidos, como Rubens Paiva e Vladimir Herzog. Tentaram sequestrar minhas filhas, uma de 13 e outra de 9 anos na época. Mas a diretora do colégio anotou a placa e tiveram que soltá-las. Depois disso fomos embora.

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Ao longo da história, o que diferencia hoje as pessoas que são consideradas heróis da ditadura das demais que viveram naquele período? Tem muita mistificação. Muita gente que ficou dentro do armário, debaixo da cama, e hoje é vendida na televisão como herói da resistência. Não houve essa resistência toda, pelo contrario. A turma toda aceitou o golpe ou ficou em cima do muro.

Como sua saída do Correio da Manhã, em 1965, alterou sua vida? O Correio da Manhã foi o único jornal que abertamente criticou o golpe. Era um jornal liberal, que até antes do golpe também criticava João Goulart. O governo militar então adotou a tática de pressionar os anunciantes para que eles não patrocinassem o jornal. Houve um dia que tínhamos apenas um anúncio. Então, para sobreviver, a diretora Niomar Muniz Sodré conseguiu um empréstimo que salvaria o jornal com um banco americano. No dia que o acordo seria assinado, eu publiquei a crônica Ato Institucional II, em que inventei um ato. O texto começava assim: “A partir da publicação deste Ato, os Estados Unidos do Brasil passam a denominar-se Brasil dos Estados Unidos”. Bem, com isso o banco cancelou o empréstimo. Quando fiquei sabendo, pedi demissão. Então, comecei a adaptar clássicos e sobrevivi assim até ir para Cuba.

Como os Estados Unidos estavam envolvidos no golpe de 1964? Para entender o golpe ele tem que ser visto no contexto da Guerra Fria. O pavor dos americanos era que o Brasil se tornasse uma nova Cuba. Cuba é um país inexpressivo, pequenininho, mas o Brasil é um mundo, é gigante. Então havia agentes do FBI espalhados pelas cidades, eles sabiam de tudo. Tinham escutas e documentavam todos os acontecimentos. Naquela época, o serviço de espionagem americano já era grande e assim eles nos observavam.

O que o senhor acha das investigações da Comissão da Verdade? Sinceramente, não acredito muito nela não. Acho um pouco furada. Eu fui convidado para dar um depoimento e eu não fui. Não fui pelo seguinte, a Comissão da Verdade tem um nome: Vladimir Herzog. E todo mundo sabe que ele foi enforcado. Ninguém tem dúvida disso, não há o que investigar. Se tivesse uma Comissão da Verdade Sérgio Fleury, que era um delegado do DOPS que perseguiu os opositores, eu também não iria depor. Depor pra que? Essa comissão deveria ser neutra e apurar tudo. Chamá-la de Vladimir Herzog significa que ela já tomou um partido, não é isenta. Eu não poderia ir a uma comissão dessas. Elas partem de um pressuposto: tentar incriminar os militares. Os militares não precisam de uma comissão. A gente sabe mais ou menos o que houve. Não sabemos nomes, mas não me interessa. O que me interessa é que o regime como um todo torturou, matou, enterrou, mas isso todo mundo sabe. Agora, apurar isso, está sujeito a injustiças, a gente que quer se promover, e os principais gorilas já sabemos quem são.

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O que acha da movimentação de alguns brasileiros pela Marcha da Família com Deus e discussões sobre o retorno de uma ditadura militar? Essa nova organização da marcha tem um apelo mais próximo dos últimos protestos, que foram manifestações contra coisas do cotidiano. A situação do transporte, do ensino, mas nenhum caráter parecido com a revolução de 1964. Tem pessoas que acham que a democracia não está sendo feita. Então querem ressuscitar o clima de 1964, mas não creio que isso leve a nada.

Se a ditadura não tivesse acontecido, como o senhor diria que seria o Brasil hoje? O Brasil não teve uma tradição fascista. Tivemos Getúlio Vargas que foi uma ditadura progressiva. Ele fez a legislação trabalhista, começou a industrialização no Brasil. Mas se a revolução de 1964 tivesse vencido provavelmente teríamos uma república sindicalista, que também é perigosa. No caso do PT, o escândalo do mensalão nos mostra que este é um partido sem ética nenhuma, de esquerda, mas sem ética. Se Jango tivesse vencido em 1964, estaríamos hoje refém dos sindicatos, que também seria uma tragédia.

Da salvação da pátria

Posto em sossego por uma cirurgia e suas complicações, eis que o sossego subitamente se transforma em desassossego: minha filha surge esbaforida dizendo que há revolução na rua.

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Apesar da ordem médica, decido interromper o sossego e assuntar: ali no Posto Seis, segundo me afirmam, há briga e morte. Confiando estupidamente no patriotismo e nos sadios princípios que norteiam as nossas gloriosas Forças Armadas, lá vou eu, trôpego e atordoado, ver o povo e a História que ali, em minhas barbas, está sendo feita.

E vejo. Vejo um heroico general, à paisana, comandar alguns rapazes naquilo que mais tarde o repórter da TV-Rio chamou de “gloriosa barricada”. Os rapazes arrancam bancos e árvores. Impedem o cruzamento da avenida Atlântica com a rua Joaquim Nabuco. Mas o general destina-se à missão mais importante e gloriosa: apanha dois paralelepípedos e concentra-se na brava façanha de colocar um em cima do outro.

Estou impossibilitado de ajudar os gloriosos herdeiros de Caxias, mas vendo o general em tarefa aparentemente tão insignificante, chego-me a ele e, antes de oferecer meus préstimos patrióticos, pergunto para que servem aqueles paralelepípedos tão sabiamente colocados um sobre o outro.

— General, para que é isto?

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O intrépido soldado não se dignou a olhar-me. Rosna, modestamente:

— Isso é para impedir os tanques do I Exército!

Apesar de oficial da reserva — ou talvez por isso mesmo —, sempre nutri profunda e inarredável ignorância em assuntos militares. Acreditava, até então, que dificilmente se deteria todo um Exército com dois paralelepípedos ali na esquina da rua onde moro. Não digo nem pergunto mais nada. Retiro-me à minha estúpida ignorância.

Clique aqui para ler a crônica completa

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