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Historiadora britânica segue raízes do machismo até a Grécia Antiga

No livro ‘Mulheres e Poder’, Mary Beard recorre a clássicos como ‘Odisseia’ para mostrar que o sexo feminino é silenciado há milhares de anos

Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 25 mar 2021, 16h20 - Publicado em 30 Maio 2018, 08h35

Na espécie de missa com que o ex-presidente Lula se despediu da vida pública em frente ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, antes de se entregar à Polícia Federal e seguir para a prisão em Curitiba, sua sucessora, Dilma Rousseff, chegou a ter o microfone nas mãos. Quem acompanhou pela TV a bênção em memória da ex-primeira-dama Marisa Letícia, no entanto, teve dificuldade de ouvir o que disse Dilma — para não dizer que não escutou coisa alguma — entre a fala do bispo Dom Angélico Sândalo Bernardino e a do próprio Lula. As palavras da ex-presidente foram encobertas pelas de jornalistas e comentaristas de plantão. É fato que Dilma ficou famosa pelos amalucados discursos improvisados, mas a má qualidade do discurso político não é privilégio de Dilma, que por essa e por outras foi alvo de vitupérios irreproduzíveis e chegou a estampar um adesivo, colado em diversos carros, em que aparecia de pernas abertas no ponto da lataria onde um frentista deve inserir a mangueira de combustível.

Capa do novo livro da historiadora britânica Mary Beard, uma consagrada especialista em Antiguidade Clássica
Capa do novo livro da historiadora britânica Mary Beard, uma consagrada especialista em Antiguidade Clássica (Reprodução/Divulgação)

A escolha da personagem, aqui, não é partidária nem gratuita: Dilma é citada pela historiadora Mary Beard em seu último livro lançado no país, Mulheres e Poder – Um Manifesto (Crítica), em que a especialista em Roma e na Antiguidade Clássica percorre as raízes do machismo para chegar às suas pontas mais profundas. Dilma, mostra a scholar de Cambridge, faz parte do rol de mulheres da política comparadas à horrenda Medusa, numa tentativa de silenciar sua voz.

O silenciamento, mostra Mary Beard, uma historiadora reputada por livros como o calhamaço SPQR, em que repassa mil anos da história romana, seu tema dileto, é milenar. A autora britânica não chega a citar o mito hebraico de Adão e Eva ou o grego de Pandora, em que mulheres são as agentes responsáveis por trazer a desgraça ao mundo, contos que podem dar ensejo, e de fato deram, a leituras de teor misógino. Ela se concentra em histórias que refletem  sobretudo o ato de calar a voz feminina, com alta dose de violência verbal, fisica ou simbólica.

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Mary Beard abre o livro com uma passagem da Odisseia, de Homero, um dos tantos clássicos que saca para demonstrar como a mulher é há milênios reprimida e relegada ao espaço privado, onde sua voz pode ressoar com “liberdade”. O trecho, em que a fiel e paciente Penélope é calada pelo próprio filho, Telêmaco, é segundo a historiadora “o primeiro exemplo registrado de um homem mandando uma mulher ‘calar a boca’ e afirmando que a voz dela não deveria ser ouvida em público”.

Penélope, assediada por homens variados, a quem rejeita enquanto aguarda o retorno de Ulisses, o herói da Guerra de Troia, pede ao bardo que se apresenta para essa multidão de pretendentes que mude o repertório. O bardo canta uma música sobre as agruras encontradas no retorno de Troia para casa, um tema triste e tenso para ela, óbvio. Telêmaco, um moleque de empatia zero, em vez de apoiar a mãe, passa um carão na coitada. “Mãe”, diz o garoto, “volte para os seus aposentos e retome seu próprio trabalho, o tear e a roca… Discursos são coisas de homens, de todos os homens, pois meu é o poder nesta casa”. Obediente, a eposa de Ulisses se retira.

“A explosão de Telêmaco foi apenas o primeiro caso numa longa série de amplamente bem-sucedidas tentativas, que se estendem por toda a Antiguidade greco-romana, não apenas de excluir as mulheres do discurso público, mas também de alardear tal exclusão. No início do século IV a.C., por exemplo, Aristófanes dedicou uma comédia inteira à ‘hilariante’ fantasia de que as mulheres deveriam assumir o controle do Estado”, anota Mary Beard.

Telêmaco diante da mãe, Penélope, sentada junto ao seu tear, instrumento por excelência das donas de casa, em imagem de vaso ateniense do século V a.C.
Telêmaco diante da mãe, Penélope, sentada junto ao seu tear, instrumento por excelência das donas de casa, em imagem de vaso ateniense do século V a.C. (//Reprodução)

Houve mulheres que ousaram falar em público, sim. Mas elas foram comparadas, como aconteceu por aqui com Dilma Rousseff, a animais. Galinhas, porcos, vacas e outros bichos são até hoje convocados para depreciar e deslegitimar o discurso feminino, num tom que dificilmente se vê ser usado contra homens, digam as bobagens que disserem.  

Apenas em dois casos a voz feminina recebia permissão para se fazer ouvir em público no mundo clássico: quando defendia a sua “categoria” e os seus interesses (lar, filhos, marido, o coletivo feminino) e quando narrava um episódio em que uma mulher era vítima ou mártir. Ainda assim, a abertura era bastante registro.

O livro, curto porque baseado em palestras que Mary Beard realizou, reúne exemplos pesados de vítimas, como o de mulheres estupradas que terminam transformadas em górgona (Medusa, na mitologia), ou com a língua cortada (a Filomela de Metamorfoses, de Ovídio) ou que se matam depois de ter a coragem de denunciar seu agressor (o príncipe Sexto Tarquínio, acusado por Lucrécia, no que seria um caso real da história primitiva de Roma).

Demonstrar a violência do silenciamento feminino é uma forma de questioná-lo e superá-lo, defende Mary Beard, para quem conhecer o passado é caminho para transformar o presente.

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“Espero que tal visão de longo alcance nos ajude a ir além do simples diagnóstico de ‘misoginia’ em que, com alguma preguiça, tendemos a reincidir. Tudo bem, ‘misoginia’ é uma maneira de descrever o que está acontecendo”, escreve a historiadora. “Se quisermos compreender o fato – e fazer alguma coisa a esse respeito – de que as mulheres, mesmo quando são silenciadas, ainda pagam um preço muito alto para ser ouvidas, precisamos reconhecer que as coisas são um pouco mais complicadas e que há uma longa história por trás de tudo.”

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