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Gonçalo M. Tavares e a glória do português

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Por Redação
Atualizado em 13 ago 2018, 22h01 - Publicado em 3 set 2011, 10h42

Os dois livros que o escritor português Gonçalo M. Tavares está lançando na Bienal do Rio, ambos pela editora Casa da Palavra, saíram em Portugal com um intervalo de sete anos: O Senhor Valéry é de 2002 e O Senhor Swedenborg, de 2009. Mas a cronologia não faz muita diferença para o autor de uma obra prolífica que desde sua estreia, em 2001, já alcançou o impressionante número de 27 títulos. É que seu singular “método”, como diz Tavares, envolve acumular o máximo de “matéria bruta” em disciplinadas sessões diárias à frente do computador para, anos depois, recuperado o distanciamento diante das palavras, dar forma final aos volumes.

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Estes se agrupam sobretudo em duas séries. O Bairro, ainda em andamento, reúne pequenos perfis fantasiosos de escritores como o poeta francês Paul Valéry e o espiritualista sueco Emanuel Swedenborg. O Reino, tetralogia já fechada, é composto de romances robustos e sombrios como Jerusalém e Aprender a Rezar na Era da Técnica, publicados no Brasil pela Companhia das Letras. Neles é possível identificar o fio condutor de uma investigação sobre a fronteira difusa entre o racionalismo e a maldade. “A literatura tem que perturbar alguma coisa”, diz Tavares.

O “método” tem funcionado. Um dos mais festejados escritores de sua geração em todo o mundo, Gonçalo M. Tavares, 41 anos, já teve livros lançados em 32 países e ganhou prêmios importantes como o José Saramago, em 2005, e o Portugal Telecom, em 2007. Ao lhe entregar o prêmio que leva seu nome, o Nobel português proferiu uma frase que ficou famosa: “Gonçalo M. Tavares não tem o direito de escrever tão bem apenas aos 35 anos: dá vontade de lhe bater.”

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Na entrevista abaixo, concedida ao site de VEJA numa livraria de Ipanema, Tavares fala de sua disciplinada rotina de trabalho, defende o hibridismo de gêneros, faz acenos simpáticos à literatura brasileira contemporânea e prevê um futuro glorioso para a língua portuguesa no cenário mundial.

É compreensível aquela frase de Saramago sobre ter “vontade de lhe bater”, mas talvez se devesse incluir entre os motivos sua produtividade absurda. Como se mantém um ritmo desses sem perda de qualidade? Quando você estreou, em 2001, tinha muita coisa pronta?
Sim, muita. Eu tenho muitos livros já escritos, escrevi imenso entre os 20 e os 30 anos. Era uma fase obsessiva, às seis da manhã já estava a escrever. Escrevia em cafés, em cadernos, depois é que passei para o computador. Eu tinha muito claro que queria separar a escrita da edição (publicação). Acho que foi a melhor opção que eu fiz, instintiva, mas das mais sensatas: pensar que a edição iria perturbar alguma coisa. Eu tinha a essa altura muito claro que não devia editar antes dos 30, e escrevia imenso. Mas a quantidade não é exatamente essa, porque os livros estão a formar blocos. O Reino são quatro livros, mas é um. O Bairro são dez livros pequenos, mas é um. Gosto da ideia do livro como uma espécie de tijolo, que tem uma vida própria, mas ao mesmo tempo, junto com outros tijolos, permite construir algo.

Aquele ritmo e aquela disciplina ainda se mantêm?
Minha rotina mudou ligeiramente, mas a disciplina mantém-se, mais ou menos. Quando há viagens, é diferente, mas em Lisboa minhas manhãs são fechadas. Escrevo das oito e meia até as duas. Nessas horas me desligo de tudo, não atendo telefone, não leio e-mails. Escrevo num ateliê que fica a cinco minutos de casa, e no caminho, a pé, procuro nem olhar para as bancas de jornal. Não tenho um número de linhas a cumprir. Há dias em que escrevo imenso, há dias em que escrevo menos. Não quero romantizar em excesso, mas em momentos como nesta viagem, estando há alguns dias sem escrever, fico irritado. Nos dias em que estou a escrever, saio para a rua às duas ou três da tarde com a sensação de que está tudo ganho, com alegria. Tento defender esse espaço do mundo exterior e principalmente das pessoas que mais gostam de mim. Hoje é um pouco diferente porque faço muitas viagens, mas naqueles primeiros dez anos não perdi mais de oito ou nove manhãs.

Você está no Brasil para lançar mais dois volumes de O Bairro, que são contos ou novelas curtas de caráter lúdico, cada um inspirado por um escritor. No caso desses dois, sobretudo O Senhor Swedenborg, o lado de jogo fica ainda mais acentuado pelo uso intensivo de figuras geométricas. De repente, a palavra ficou insuficiente?
Me agrada muito essa ideia do desenho ser uma outra forma de escrever. Uma coisa que me choca um pouco foi o desenho ter entrado numa espécie de subterrâneo, como algo que não existe no pensamento, como se este só pudesse ser expresso pela linguagem. O desenho afastou-se do raciocínio. N’O Bairro há muito isso, e especialmente em O Senhor Swedenborg. Quando estou a escrever a mão, há coisas que penso através do desenho e só consigo expressar através do desenho. Os desenhos nesse livro são claramente para serem lidos e não para serem vistos.

Aliás, você pretende cumprir a promessa de povoar O Bairro de todos aqueles “senhores” que aparecem no traçado inicial do projeto?
Não, vou morrer antes, é evidente (risos). Mas gosto de projetos em que não se sabe bem o que vai acontecer.

O Bairro é pura fantasia e jogos de linguagem. Nos quatro romances da série O Reino, em que a atmosfera é mais pesada, personagens têm nomes de sonoridade centro-europeia e vivem em países não identificados, num momento histórico nebuloso. A definição de ficção realista é discutível, mas seria o caso de dizer que você rejeita o realismo ou pelo menos aquele tipo de realismo que Paul Valéry ironizou na frase: “A marquesa saiu às cinco horas”?
O Reino é realista no sentido de descrever uma realidade que poderia ter existido, mas no nível da linguagem, sim, afasto-me por completo do realismo. Acho que um livro que fique muito preso à repetição do cotidiano, da vida normal, pertence à vida normal. A literatura tem que perturbar alguma coisa, nos fazer sentir que entramos num outro mundo. Tem que fazer parar. Gosto da ideia de que a pessoa leia e possa interromper, reler. Acredito que um livro entre no campo de força do literário quando a pessoa, depois de o ler, sente que vai voltar a ele. Mesmo que não o releia, vai pensar sobre ele.

Um traço marcante da sua ficção é a linguagem híbrida, entre a narrativa e o ensaio. Alguns críticos têm dito que a narrativa, o romance, está perto do esgotamento. Você reconhece essa crise? O hibridismo de gêneros pode ser interpretado como uma resposta a isso?
Se nós virmos a narrativa como contar uma história, pode-se dizer que desde os gregos estamos repetindo certas estruturas, trabalhando com os mesmos sentimentos humanos, com pequenas variações. Também no ensaio há quem diga que depois de Platão tudo são notas de rodapé. Eu pessoalmente tenho dificuldade de distinguir uma forma pura, o puro ensaio ou a pura ficção. Para mim, aquilo é o mesmo mundo, como leitor eu posso passar de dez páginas de ficção para dez páginas de ensaio. Eu nunca penso: “Agora vou escrever um romance”. Eu gosto muito da palavra “texto”, que não tem essa marca do gênero literário, que eu acho que é uma marca limitadora do potencial enorme do alfabeto. Instintivamente, escrevo, e instintivamente aparece uma história, mas o pensamento entra na história. O raciocínio também é uma narrativa. Penso que a linguagem, qualquer linguagem, na narrativa ou no ensaio, é o que mais se aproxima de compreender alguma coisa do ser humano. É isso que me interessa.

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Às vezes, suas narrativas dão a impressão de terem o pensamento como motor, com as peripécias e os fatos sempre subordinados às ideias.
Não sei. Também não consigo ver o pensamento antes da narrativa. Eu não planejo meus livros. Quando começo a escrever um texto, não sei que personagens vão aparecer, que acontecimentos vão aparecer. Começo a escrever quase instintivamente. Nunca parto de ideias prontas, nunca penso: “Vou escrever sobre tais ideias”. Vou escrevendo. Mas acho que os livros devem provocar reflexão e tento não abdicar disso. O prazer é fundamental, mas eu tento que seja um prazer que obriga a parar, a pensar. Entendo a literatura como um lugar de paragem. Eu gosto mesmo é de histórias, de contar histórias, mas espero que sejam histórias diferentes das que se podem contar em outros meios, como a televisão.

Existem autores contemporâneos que, quando lançam um livro novo, fazem você correr para comprar?
Acompanho dezenas de autores. Não é dizer que vá correndo, mas procuro ler. Gosto de coisas muito diferentes, como o Bairro mostra um pouco. Não é que ali estejam os meus autores preferidos, aquela seleção tem mais a ver com o instinto de saber quais são os mais lúdicos, mas leio desde ensaio até ciência, ficção e poesia. Gosto muito do mundo imaginário e gosto muito do mundo realista. Por exemplo, Cormac McCarthy é um autor que me agrada, mas também gosto de Italo Calvino. Mas minha grande referência em literatura é clássica: Sêneca, Cartas a Lucílio, que me marcou muito. E na filosofia o alemão Peter Sloterdijk, de quem leio tudo que é traduzido.

Seu próximo livro já está pronto? Pode falar um pouco dele?
Eu tenho um método que é escrever a matéria bruta e depois deixar de lado um tempo. Escrevo e esqueço, fico no mínimo um ano ou dois sem olhar para aquilo. Depois volto, retomo, corrijo, corto. Principalmente, corto. Tenho necessidade desse afastamento para ter um olhar realmente crítico, quase como um leitor. Os livros que saem são livros que tiveram esse percurso. Portanto, o que eu vou publicar em dezembro não é o que escrevi em maio deste ano. Chama-se Canções Mexicanas e teve origem numa viagem que fiz à Cidade do México. É uma coisa que eu não sei bem o que é. São textos.

A literatura brasileira, vista de Portugal, está num momento ruim? Anda na moda entre certos críticos daqui elogiar a exuberância da literatura portuguesa e até o domínio maior que vocês têm da língua, o modo como exploram todos s recursos sintáticos e vocabulares do idioma…
Não tenho essa ideia. Os elementos que tenho do lado de lá me dizem que não há uma diminuição objetiva da edição de autores brasileiros, pelo contrário. Talvez os últimos anos tenham sido aqueles em que mais autores brasileiros, sem ser os clássicos, têm sido editados. Dezenas estão a ser editados e são recebidos com a sensação de que aquilo dá uma força, uma variedade que acrescenta muito à literatura de língua portuguesa. Autores portugueses não escrevem daquela maneira. Não tem a ver com ser melhor ou pior, mas completamente diferente. Sobre a questão da língua, é engraçado: o discurso em Portugal é mais ou menos esse, mas ao contrário. A ideia que há lá é que a língua utilizada pela literatura portuguesa é mais formal e que a língua utilizada pela literatura brasileira e africana é mais criativa. É essa coisa do outro ter sempre algo que nós não temos. Se a língua portuguesa só existisse em Portugal ou só existisse no Brasil, ficávamos muito a perder. Se há uma coisa que não me entusiasma no português brasileiro são aquelas palavras do inglês, que no Brasil se usa bastante mais. Mas em Portugal temos uma espécie de alfândega, como se cada palavra que quisesse entrar tivesse que mostrar documentos, provar que não tem crimes no passado e que tem trabalho garantido para os próximos seis anos, e isso é também excessivo. Mas vejo as coisas cada vez mais juntas. A circulação de informações nunca foi tão grande, o contágio começa a aparecer muito mais e começa a formar-se, felizmente de forma quase instintiva e natural e não através de um decreto, uma massa única da língua portuguesa, que é uma potência enorme em movimento. Seria preciso falharmos muito para que o português não fosse daqui a dez anos uma das principais línguas do mundo, até em circuitos mais institucionais.

Sérgio Rodrigues, do blog Todoprosa, especial para VEJA Meus Livros

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