O oráculo do suborno transnacional
Daniel Lança analisa o ímpeto dos EUA em investigar e punir a corrupção internacional e os benefícios econômicos dessa iniciativa
Com a óbvia globalização dos sistemas políticos e jurídicos pelo mundo, é certo dizer que atualmente é possível punir a corrupção transnacional com mais assertividade do que nunca. O que parece ser uma excelente notícia quando pensamos em integridade global, também se transformou em uma ótima oportunidade aos EUA para liderar a persecução civil e penal da corrupção pelo mundo. E lucrar consideravelmente.
Nas teorias de Direito relativas à territorialidade da aplicação de uma determinada lei, é comum a prevalência da soberania dos países em investigar e julgar fatos do cotidiano, com algumas exceções. Especificamente nos casos de corrupção, a comunidade internacional vem aprimorando normas e ferramentas de punição ao suborno transnacional.
Do ponto de vista legal, as convenções internacionais (ONU, OCDE, OEA) fortaleceram a necessidade de que seus países signatários investiguem e julguem casos de corrupção contra agentes públicos estrangeiros, como fez o Brasil com o advento da Lei Federal nº. 12.846/13. Do ponto de vista de ferramentas de investigação transnacional, o mundo tem pavimentado – ainda a passos lentos – a construção de acordos de cooperação internacional entre órgãos de controle e agências anticorrupção ao redor do globo.
Particularmente, os EUA têm considerável proeminência no assunto. Semelhantemente à política externa estadunidense que se vê como guardiã da segurança, da paz e da prosperidade mundial, o papel do Department of Justice (DoJ) na investigação e punição da corrupção vai muito além da salvaguarda aos interesses nacionais. Um breve olhar à história recente ajuda a entender o porquê.
Até a década de 1970, não havia limites à corrupção pelo mundo, especialmente oriunda das grandes corporações multinacionais que investiam em novos mercados emergentes. Uma das investidas acabou deflagrando o escândalo Watergate e derrubou o Presidente dos EUA Richard Nixon. O Congresso estadunidense respondeu imediatamente aprovando em 1977 a Foreign Corrupt Practices Act (FPCA), primeira legislação que punia fortemente a corrupção internacional.
De 1977 até o final dos anos 1990, nenhum outro país estabeleceu legislação semelhante. Ao assimilar que havia sido gerada certa desvantagem competitiva às empresas multinacionais estadunidenses, os EUA então passaram a pressionar países e órgãos multilaterais a estabelecerem normas similares.
Vigente até os dias atuais, a FCPA traz a concepção da jurisdição prescritiva com enorme abrangência extraterritorial. Para se ter uma ideia, pode ser investigado e condenado com base na FCPA qualquer cidadão ou empresa cuja prática de corrupção tenha relação com cidadão estadunidense, empresa ou subsidiária estadunidense ou qualquer empresa internacional com operação em território nos EUA, com capital aberto nas bolsas estadunidenses ou que tenham negócios ou conexões com os EUA – ou seja, praticamente todo o mundo.
Assim, o DoJ se firmou como uma espécie de oráculo do suborno transnacional. Ao ter garantida legitimidade jurídica para investigar casos de corrupção internacional de maneira quase ilimitada, é impossível não perceber os benefícios econômicos decorrentes do ímpeto da persecução do órgão estadunidense. Só nos últimos dez anos, o DoJ firmou acordos que previam o pagamento de multas significativas ao governo dos EUA. Alguns poucos exemplos são: US$ 3,3 bi (Goldman Sachs), US$ 1 bi (Ericsson) e US$ 800 milhões (SIEMENS). No caso de empresas brasileiras, as multas superam R$ 6 bilhões somente contra Petrobras, Odebrecht, JBS e Braskem.
Seja como for, a agressiva jurisdição do DoJ contribui para neutralizar eventual omissão de países que fazem vista grossa a casos de corrupção, premiando financeiramente sua proatividade. Talvez também seja uma oportunidade de outros países, como o Brasil, avançarem na persecução civil e criminal contra a corrupção transnacional, que faz bem ao ambiente produtivo e ainda pode gerar interessantes dividendos ao erário.
* Daniel Lança é advogado, Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e sócio da SG Compliance. É Professor convidado da Fundação Dom Cabral (FDC) e foi um dos especialistas a escrever as Novas Medidas contra a Corrupção (FGV/Transparência Internacional)