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O crime de desacato ainda faz sentido?

Daniel Lança analisa a tipificação do crime de desacato na atual conjuntura que trata servidores públicos como monarcas

Por Daniel Lança
22 nov 2021, 09h04

Acompanhe comigo o raciocínio: o Código Penal brasileiro, uma lei que data dos idos de 1940, tipifica como crime “desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela” em seu artigo 331. Alguém poderia dizer que o Brasil de então era imbuído de uma visão de nababesca superioridade do servidor público, compreendido pela figura da autoridade. Será que isso ainda faz sentido em pleno século XXI?

A provocação é proposital: queremos considerar servidores públicos como autoridades? Na relação entre o cidadão e o servidor público – do técnico administrativo ao juiz de direito – existe de fato superioridade hierárquica entre eles e nós, usuários da prestação de seus serviços e bancados por nós pagadores de impostos? 

Se considerarmos que há, então retroalimentamos a macro visão da década de 1940, cujas raízes constituíram o que hoje combatemos: a monarcalização de servidores. Pense comigo: não são poucos os agentes públicos no Brasil que moram ou trabalham em palácios, tem toda espécie de serviçais – carros oficiais com motoristas, mordomos, assessores sem fim ou auxílios antiéticos. Aceitar a hierarquia e superioridade destes significa legitimar o que eles realmente acreditam ser: os monarcas do nosso tempo.

Deslegitimar a autoridade, por outro lado, não significa entender que estes servidores públicos não tenham atribuições legais diferenciadas, que permitam, por exemplo, que um guarda de trânsito multe o Presidente da República; ou que um juiz condene um desembargador, por qualquer motivo, nos termos da lei.

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Nesse cenário, não faz sentido o crime de desacato.

Vale lembrar que sua extirpação do crime de desacato do mundo jurídico não deixaria impune quem ofenda um agente público. Já há o crime de injúria, inclusive cuja redação apresenta um acréscimo de pena de até um terço quando a vítima é servidor público.

Exatamente por isso, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) aprovou, ainda em 1995, um relatório em que defende a incompatibilidade do crime de desacato com a Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 13), que protege a liberdade de expressão. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte (caso Houston v. Hill) considerou inconstitucional algumas leis estaduais que puniam o desacato exatamente por violarem a liberdade de expressão; por sua vez, em vários países da Europa há apenas uma previsão de agravamento de pena para injúria/difamação praticada contra agentes públicos. 

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Já no Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou, em 2020, uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) negando o pedido de inconstitucionalidade do crime de desacato. Entretanto, à luz do novo entendimento do STF, sua interpretação deve ser restritiva, de modo a evitar a aplicação de punições injustas e desarrazoadas.

Aceitar que funcionários públicos sejam respeitados no uso de suas atribuições não pode significar a admissão de sua superioridade em relação ao cidadão. Precisamos caminhar para entendermos com naturalidade a existência legítima de diferentes papeis e responsabilidades dos servidores, e compreender que nenhum deles é monarca absoluto. Caso contrário, caberá a nós – pagadores de impostos – o papel de bobos da corte.

* Daniel Lança é Head de ESG do Instituto Inhotim, sócio da SG Compliance e professor convidado da Fundação Dom Cabral (FDC). É Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e especialista em Gestão de Riscos pela Universidade Harvard

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