Censura: Arquivo Nacional modifica documento para tirar menções à ditadura
Supressão de trechos mostra que órgão tem censurado expressões sobre o tema, como havia denunciado esta coluna
As denúncias feitas nas últimas semanas sobre a censura que estaria sendo praticada pelo Arquivo Nacional em relação a documentos e citações sobre a ditadura militar no Brasil ganharam mais uma prova.
Nos últimos dias, esta coluna teve acesso exclusivo a um documento sobre a celebração do Dia Mundial do Patrimônio Audiovisual 2021 que foi alterado após “sugestões” feitas por dirigentes do Arquivo Nacional e mostram a troca ou exclusão de expressões ligadas à ditadura militar.
A primeira versão do documento, assinada em 6 de outubro, afirma que atualmente “registros audiovisuais podem ser feitos por qualquer um que tenha um celular nas mãos” e facilitam documentar casos de violações de direitos e abusos de autoridade.
“Há toda uma gama de documentos audiovisuais que se relacionam ao tema da Cidadania e Direitos: imagens e sons gravados para documentar um período e servir como prova de crimes praticados (como é o caso das audiências e entrevistas realizadas pela Comissão Nacional da Verdade)”, mostra um dos trechos do documento original.
A segunda versão do documento, assinada em 21 de outubro, poucos dias antes desta coluna noticiar a queda da direção do Arquivo Nacional, não traz o trecho acima sobre a Comissão Nacional da Verdade. O parágrafo foi simplesmente excluído na versão final do documento.
O texto original também citava o caso do assassinato de George Floyd por um policial branco em maio de 2020 nos Estados Unidos.
“Um caso emblemático foi o do assassinato de George Floyd, em 25 de maio de 2020 nos Estados Unidos da América, por um policial branco. A ação, que resultou na morte do afro-americano, foi filmada pelas pessoas que passavam e essa gravação rodou o mundo, culminando em protestos em vários países, por sua vez também registrados”.
O trecho acima também foi totalmente retirado na versão modificada do documento.
Em outro ponto, no tópico de sugestão de filmes para celebrar a data, a versão original cita a obra “Uma Família Ilustre” (Brasil, 2015, 15 min), de Beth Formaggini, e descreve a obra com o seguinte texto: “O filme mostra a conversa entre Cláudio Guerra, ex-delegado da Polícia Civil e agente da repressão durante a ditadura militar, e o professor Eduardo Passos, psicólogo clinico que trabalha com direitos humanos”.
Na segunda versão do documento, foi retirada a menção ao fato de Cláudio Guerra ter sido agente de repressão da ditadura.
O trecho modificado ficou assim: “O filme mostra a conversa entre Cláudio Guerra, ex-delegado da Polícia Civil, e o professor Eduardo Passos, psicólogo clinico que trabalha com direitos humanos”.
As mudanças, que poderiam ser apenas alterações comuns em outro contexto, mostram que existe sim uma orientação do Arquivo Nacional para censurar expressões que lembrem a ditadura militar, como revelado por esta coluna.
E embora o órgão tente, de forma muito vaga, negar a conduta, as modificações no documento enviado a esta coluna são mais uma prova de que os dirigentes querem esconder o período sombrio vivido pelo país.
Com a troca da direção, causada pelo trabalho jornalístico de VEJA, fica a expectativa de que finalmente o Arquivo Nacional trabalhe de forma imparcial e pare de tentar omitir os danos causados pela ditadura militar.
No regime, que vigorou entre os anos 1964 e 1985, aconteciam censuras semelhantes. A coluna entrou em contato com o Arquivo Nacional por telefone e por email nesta sexta-feira, 5, mas não obteve respostas.