A necroteologia a serviço de Bolsonaro
Teólogo Rodolfo Capler denuncia a manipulação do discurso religioso a favor do atual governo
Chegamos a triste marca de 531 mil mortos no Brasil em decorrência da Covid-19. A CPI foi instalada no Senado para apurar eventuais responsáveis pela catástrofe viral e, pelo que tudo indica, o presidente Jair Bolsonaro tem culpa no cartório por ter se omitido na compra das vacinas e por suas frequentes atitudes inadequadas em relação aos protocolos de segurança estabelecidos pela Ciência, assim como por seu negacionismo em relação à eficácia das vacinas e por sua relutância em se imunizar.
Como se não bastasse ainda há suspeitas de corrupção do governo na participação do esquema das “rachadinhas” e na compra das vacinas Covaxin, segunda acusação do deputado Luis Miranda (DEM – DF). Em resposta à carta protocolada pelos membros da CPI, na última 5ª feira (8.jul.2021) – cobrando justificativas do Presidente quanto às acusações que lhe foram feitas – Bolsonaro afirmou: “Caguei para a CPI”. Na última 6ª feira (9.jul.2021) o chefe do Executivo também voltou a fazer ameças à democracia insinuando haver fraudes no sistema de urnas nas eleições. Chamou o presidente do TSE (Superior Tribunal Eleitoral), Roberto Barroso, de “idiota” e afirmou ainda que o Brasil pode não ter eleições no próximo ano.
Diante de toda essa escroqueria aberta ainda há muitos líderes cristãos legitimando o atual governo com a utilização da prerrogativa bíblico-teológica, como são os casos de figuras de destaque nos círculos evangélicos como Silas Malafaia, Cláudio Duarte, Lucinho Barreto e Franklin Ferreira. De acordo com esses líderes o governo Bolsonaro protege princípios ético-morais que se coadunam com a Bíblia Sagrada. Muitos dos religiosos favoráveis a Bolsonaro justificam seu apoio irrestrito ao governo amparando-se na defesa da família tradicional, na luta contra a ameaça do “marxismo cultural” e na obediência a textos bíblicos como Romanos 13:1, que declara: “Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus, as autoridades que existem foram por ele estabelecidas”.
Ao lançar mão do discurso religioso para defender um governo que a todo tempo viola dois dos princípios basilares da fé cristã (bem como do Estado Democrático de Direito), a saber; o direito à vida e a dignidade da pessoa humana, tais líderes estão fomentando uma necroteologia. Podemos pensar na necroteologia como congênere da “necropolítica” – conceito elaborado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe. Empregando os termos gregos “necro” (“nekros”), que significa “cadáver” e “política (“politikos”), Mbembe desenvolveu um conceito filosófico para referir-se aos limites da soberania quando o Estado decreta quem deve morrer e quem deve viver. Ou seja, a necropolítica é a política da morte adotada pelo Estado.
Emprestando a concepção de Mbembe o que vemos hoje no campo religioso evangélico no Brasil é a gestação de uma necroteologia. A necroteologia nada mais é que o discurso religioso a serviço da morte ou de sua justificação. Percebemos a ação dessa nefasta teologia por meio do silenciamento de grandes líderes cristãos em relação aos chamados “pecados estruturais” – que são atitudes que cooperam com o racismo, com a corrupção e com outras mazelas sociais –, e pelo desrespeito aos corpos e às experiências de sofrimento da população. Diante de mais de 5 mil mortos pela pandemia, Bolsonaro perguntou: “E daí?”. Chamou o vírus de “gripinha” e achincalhou aqueles que se vacinariam com a Pfizer/BioNtec dizendo que corriam o risco de vivarem jacaré.
Os pastores e líderes cristãos que apoiam Bolsonaro mesmo diante de todos os terríveis fatos que comprovam sua inépcia, omissão, violência, autoritarismo e desumanidade, estão abraçando a necroteologia e fomentando-a por meio de seus ministérios e ações políticas. Vale sempre relembrar que a teologia, um dia considerada a “mãe de todas as ciências”, é uma ferramenta a serviço do bem comum. A sua prática deve desembocar na prosperidade de indivíduos, comunidades e nações; nunca na legitimação da morte.
Portanto, a semelhança de Jesus Cristo que combateu as necroteologias de sua época – chamando o déspota Herodes de “aquela raposa” e muitas vezes denunciando os fariseus como “hipócritas” e “filhos do inferno” -, cabe a todos nós a responsabilidade de nos opormos às “teologias da morte” encampadas a serviço do atual governo.
* Rodolfo Capler é teólogo, pesquisador e escritor