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Livro traz mulheres arrependidas de ter filho: ‘Mães são humanas’

Antropóloga ouviu 23 entrevistadas, algumas já avós, que se deram conta de que a maternidade não era para elas, e acredita que o número seja muito maior

Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 13 jun 2018, 13h50 - Publicado em 13 jun 2018, 08h06

Há mais de meio século, no Poema Enjoadinho, Vinicius de Moraes se arriscava a desfiar a ambiguidade da relação com os filhos. “Filhos? Filhos / Melhor não tê-los / Noites de insônia / Cãs prematuras / Prantos convulsos / Meu Deus, salvai-o! / Filhos são o demo / Melhor não tê-los… / Mas se não os temos / Como sabê-los?”, escreveu o poetinha, antes de concluir de modo conciliador: “Chupam gilete / Bebem xampu / Ateiam fogo / No quarteirão / Porém, que coisa / Que coisa louca / Que coisa linda / Que os filhos são!”

Menos feliz foi o final do Desafio da Maternidade, brincadeira que tomou as redes sociais há dois anos e levou inúmeras mulheres a elencar maravilhas sobre a vida pós-parto, até a dona de casa Juliana Reis optar pela sinceridade, dizer que odiava ser mãe ainda que amasse o filho, viralizar em meio a uma polêmica que chegou à televisão e ter o seu perfil denunciado e bloqueado no Facebook. Juliana apenas expôs, como Vinicius, a dubiedade da experiência. Mas era uma mulher quem falava: delas, muito mais do que deles, a sociedade espera uma abnegação total pela cria. Pode-se imaginar, então, o tabu quebrado pela antropóloga israelense Orna Donath com o livro Mães Arrependidas (Civilização Brasileira), primeiro estudo sobre mulheres que assumem se arrepender da maternidade.

Capa do livro ‘Mães Arrependidas’, de Orna Donath (Reprodução/Divulgação)

Depois de publicar um anúncio em um jornal em busca de fontes, Orna reuniu o relato de 23 mães, algumas já avós, que aceitaram depor sob pseudônimo. Foram cinco anos de entrevistas e de pesquisas, que a antropóloga revelou em 2013 a um veículo de imprensa da Alemanha, país onde 8% das mães se consideram arrependidas, segundo um estudo recente – mas a imensa maioria não traz a questão a público. A revelação foi a faísca para uma controvérsia furiosa, que passou de um país a outro, e que, à medida que se alastrava, migrava do arrependimento para as ambiguidades da maternidade, forma mais amena de abordar o tema. No Brasil, onde o livro mal foi comentado desde o lançamento, no final de 2017, o silêncio pode ter sido uma estratégia, ainda que inconsciente, de defesa diante do tabu.

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Em Israel, sua terra natal, a polêmica não foi menor que na Alemanha: impulsionada pela cultura judaica, a taxa de natalidade israelense é de três filhos por mulher, índice de fertilidade muito maior que a média dos membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que é de 1,74. Ainda assim, Orna, que decidiu aos 16 anos não ter filhos, sente que valeu a pena ter comprado a briga. Depois de editado e divulgado o livro, recebeu mensagens de mulheres que disseram se sentir representadas por ele, além do depoimento, comovente, de uma estudante que contou finalmente compreender a própria mãe.

 

Em Mães Arrependidas, você reúne o relato de 23 mulheres que se arrependeram de ter filhos. Acredita que o número de arrependidas, na realidade, seja maior? Desde que o publiquei, tenho recebido mensagens de mães arrependidas de diferentes países. Além disso, outras falaram sobre o arrependimento em plataformas de mídia, blogs e redes sociais. E, depois do meu estudo, saíram outros sobre o tema. Antes, não havia nada. Então, sim, as mulheres que ouvi representam apenas uma parcela do total, mas não acho que um dia saberemos de fato quantas se arrependem da maternidade. Muitas preferem manter isso em segredo, especialmente se o clima social não permitir que se expressem.

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De modo geral, as suas entrevistadas dizem que amam seus filhos. Seria o amor algo natural? De fato, quase todas sublinharam repetidas vezes que amam os filhos como seres humanos, que adoram quem eles são – mas que odeiam estar na posição de mães no relacionamento que têm com eles. Como várias sentiram arrependimento já na gravidez, podemos entender que não foi pela personalidade da criança que se arrependeram, mas por terem percebido que a maternidade não é para elas. Não precisamos ver o amor e o arrependimento como um paradoxo, ou estaremos classificando nossos mundos emocionais de maneira binária. Duas das mães que participaram do estudo disseram que não amam um de seus filhos tanto quanto os outros. Acredito nas mães que dizem amar os filhos, mas também devemos levar em conta que, no contexto social contemporâneo, o amor pelas crianças e sobretudo pelos próprios filhos é considerado sagrado, um teste moral feminino. A associação entre amor e maternidade é institucionalizada e a expressão do amor é estruturada como natural em termos de identidade feminina. Faz parte do status social de uma “boa mãe”.

Cientistas sustentam que hormônios como a ocitocina e o famoso instinto materno agem para aproximar mãe e filho. Provavelmente. Mas há outras variáveis dentro da relação humana entre mãe e filho, já que não somos apenas entidades biológicas manipuladas por instintos. A psicologia e os imperativos sociais também desempenham seus papéis.

Filhos são para sempre. Pensando nisso, identificar o arrependimento não pode colocar um obstáculo? O fato é que o arrependimento existe, quer as pessoas gostem ou não. É uma situação emocional que pode acompanhar qualquer vivência, qualquer decisão ou relacionamento. A maternidade também é um relacionamento, e pode mudar a vida das pessoas de maneiras que não podiam ser previstas até um segundo antes de a criança nascer – então, faz sentido que haja mulheres que se arrependam. Se deixarmos de tratar a maternidade como um reino mítico e encararmos as mães como seres humanos, talvez compreendamos que mulheres de carne e osso podem pensar e sentir que cometeram um erro. Reconhecer que existe o arrependimento em relação à maternidade pode ser crucial para o bem-estar dessas mães, para que menos mulheres nessa condição se julguem exceções monstruosas. Eu acredito que também é bom para as crianças, se as suas mães se sentirem menos culpadas e mais humanas.

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Mães arrependidas chegam a se julgar monstruosas? Sim, com certeza. É um estigma social. Por isso também é crucial falar sobre o arrependimento: para que a sociedade repense a enorme pressão que há sobre as mulheres (para se tornarem mães) e sobre as mães (para sentirem e agirem da maneira “correta”). Essas pressões criam sofrimento na vida das mães e dos filhos. Ao se falar de maneira honesta sobre a possibilidade do arrependimento, mais e mais mulheres talvez tenham permissão de decidir por si próprias se tornarem mães ou não, muitas hoje têm filho sem sequer se questionar se querem ou se devem. E mais e mais mães poderão desabafar sem ser condenadas. Não é necessariamente o arrependimento que cria o sofrimento, mas as reações da sociedade a ele. Meu estudo não é um chamado para glorificar o arrependimento, mas para reconhecer a sua existência e para que deixemos de puni-lo. Arrepender-se é humano. Mães são humanas.

Aprendemos na escola que as pessoas nascem, crescem, se reproduzem e morrem. Ter filhos é parte natural da vida? É verdade, isso é o que quase todos nós escutamos desde a mais tenra idade – em casa, na escola, na imprensa, nos filmes etc. Para muitos de nós, esse caminho será perfeito, adequado. Para outros, no entanto, isso não acontecerá, e esses terão de lidar diariamente com acusações e censuras por serem “desviantes”. Não há uma única maneira de viver a vida, e a mensagem que existe, a de que este é o caminho natural, vem sendo usada pela sociedade para nos “alinhar”, com um argumento pretensamente legitimador que vem da biologia. O axioma natural é benéfico para as nações, para a economia, para a lógica capitalista, para os regimes religiosos e para os interesses patriarcais e heteronormativos. Constatar que há mulheres que não se sentem à vontade com a maternidade e que se arrependem de ser mães é facultar a todas o domínio sobre os seus corpos, pensamentos, memórias, emoções, desejos e necessidades – e isso é perigoso para a sociedade, que depende de que as mulheres façam “o seu trabalho” sem questioná-lo.

O arrependimento pode ser passageiro? Acredito que para muitas mulheres possa ser uma atitude emocional fugaz, que se transforará ao longo dos anos (nesse caso, arrependimento aparece misturado a outra experiência materna: a da ambivalência). Para outras, no entanto, o arrependimento pode ser consistente e permanente. Algumas das mães que participaram do meu estudo já entendiam, durante a gravidez ou depois do parto, que haviam cometido um erro, e ainda sentem e pensam assim depois de décadas – várias delas são avós.

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Hoje, vemos mais homens participando da criação dos filhos. Isso poderia aliviar a situação para mães arrependidas? Na verdade, um envolvimento maior de homens em relacionamentos heteronormativos é criticamente necessário, já que os filhos são deles também. Isso pode de fato reduzir o volume de dificuldades que tantas mães ao redor do mundo enfrentam, mas pode não impedir o arrependimento. Várias mulheres que participaram do meu estudo cuidam de seus filhos todos os dias, são as suas principais cuidadoras, mas outras estão menos envolvidas, casos em que o pai é o maior cuidador. Algumas veem os filhos alguns dias por semana apenas ou ocasionalmente, caso em que eles vivem com os pais ou já são grandes, independentes e saíram de casa – moram em outra casa, outra cidade ou no exterior. O arrependimento não se deve apenas a uma questão de condições, portanto, mas a um sentimento interior de que a maternidade não era para elas.

A entrada das mulheres no mercado de trabalho pode ajudar a explicar o arrependimento ou ele seria, na verdade, algo antigo, mas só agora pesquisado? Em geral, as vozes das mulheres e das mães foram negligenciadas ao longo da história, por isso não sabemos quantas se sentiram inadequadas na maternidade lá atrás. Desse modo, é impossível saber se o arrependimento é um fato novo ou antigo. O que podemos afirmar, a partir dos fragmentos de evidências do século XIX, é que ali já havia mães que escreviam sobre as suas agonias, aborrecimentos, frustrações e outros sentimentos considerados fora da ordem – ou da lei.

No livro, você conta como o debate sobre o arrependimento, na Alemanha e em outros países, acabou migrando e se concentrando na questão das ambivalências da maternidade. Na sua opinião, por que aconteceu isso? Desde novas, somos informadas de que a nossa principal ou única essência na vida é ser mãe. Lamentar a maternidade é dar voz a uma outra verdade, uma verdade que enfraquece ordens sociais vigentes, daí as reações furiosas. Quando uma mulher se arrepende da maternidade, ela nos indica que ser mãe não tem um único, mas diversos significados e que, além disso, a maternidade é uma história não linear e sem um final necessariamente “feliz”. Mães que se arrependem não fornecem aquela catarse que a sociedade exige das mulheres. Ao contrário de um caso de depressão pós-parto, em que há a esperança e o desejo de que um dia tudo fique bem, as mulheres que se arrependem não vivem essa catarse. As mais velhas entre elas deixam evidente que, mesmo que o tempo passe, o arrependimento pode não se desfazer. Elas negam a mítica. Esta é uma das razões pelas quais o que têm a dizer é considerado um ultraje e provoca reações tão tempestuosas.

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A mãe arrependida deve contar ao filho? Como filha, eu compreendo que o bem-estar das crianças não deva ser desconsiderado. No entanto, há uma distância grande entre conversar com as crianças sobre algo que pode ser doloroso e abusar delas. E existe a possibilidade real de que os filhos sintam que as mães não têm interesse na maternidade e de que assumam a responsabilidade por tudo, culpando-se por isso. Esta é a razão pela qual algumas mulheres que participaram do meu estudo consideram falar sobre o arrependimento com os filhos, quando forem mais velhos. Elas consideram fazer isso porque – entre outras razões – conseguem separar o amor que têm pelos filhos do arrependimento que sentem pela maternidade, e querem entregar um roteiro emocional completo, que tire a culpa dos ombros deles. Seria uma forma de protegê-los. Além disso, muitas mães arrependidas acham válido que os filhos saibam que a maternidade ou a paternidade pode não ser uma experiência tão satisfatória quanto dizem, para que pensem melhor se desejam ser pais ou mães. Que conheçam outras realidades e não tenham acesso apenas à narrativa mítica, que pode causar frustração e sofrimento. Em outras palavras, para elas, ser uma boa mãe é tentar reduzir o sofrimento na vida de seus filhos.

Homens também se arrependem de ter filhos? Sim. Eu entrevistei dez homens que se arrependeram da paternidade. Uma das diferenças entre eles e as mulheres que entrevistei é que a maioria se tornou pai, embora não quisesse, porque a parceira queria ser mãe e o marido não queria viver sem ela, mas sem sofrer ameaças. Isto é, eles tomaram suas decisões sem serem o risco de divórcio, ao contrário de várias mulheres que ouvi.

O arrependimento pode explicar os maus tratos e a violência contra as crianças? Como há mães que podem abusar de seus filhos e machucá-los embora não se arrependam de tê-los, sugiro não vincular uma coisa à outra. O que eu vi, em meu estudo, foram mulheres que tentavam fazer o melhor que podiam para cuidar dos filhos, apesar do arrependimento. Mulheres que reconheciam profundamente sua responsabilidade em relação aos filhos e faziam esforços para lidar com isso. Não estou tentando pintar um quadro idealista, claro que essas mães experimentam muitas dificuldades ao longo do caminho – mas não é necessariamente o quadro horrível que as pessoas tendem a ter em mente.

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