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Um médico brasileiro em quarentena nos EUA

As grandes inseguranças iniciais do confinamento, conciliar a educação dos filhos e trabalho sob o mesmo teto, se mostraram o grande presente dessa pandemia

Por Adilson Costa
Atualizado em 13 ago 2020, 13h18 - Publicado em 13 ago 2020, 13h03

Moro nos Estados Unidos já há alguns anos e hoje vejo que talvez tenha passado por uma experiência um pouco diferente em relação a de muitos brasileiros. No início de março, a dimensão do que seria o coronavírus ainda era uma incógnita. Mesmo com uma esperança por parte de países de fora do eixo asiático-europeu em conseguir minimizar a real extensão da possível pandemia, vários setores americanos já temiam e se preparavam para o pior.

O primeiro setor a identificar a imensidão por aqui dessa pandemia foi o escolar. Escolas encerrando as atividades presencias em menos de 24 horas, mas sem suspender as aulas, anunciando a temida educação domiciliar. Em seguida, o setor corporativo, no qual os profissionais passaram a trabalhar de casa no sistema de escritório doméstico. Porém, a preocupação em juntar os dois era realmente assustadora, na verdade, desesperadora.

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Como se sabe, a prestação de serviço nos EUA é algo muito caro. Ter uma pessoa que faça a limpeza da casa todos os dias é artigo de luxo. As pessoas se contentam com serviço de faxina, a cada 15 dias ou uma vez por mês, a preços variando de US$100 a US$350 por 2 horas de trabalho. Juntando-se a isso, o próprio sistema familiar americano, no qual a família é formada por pais e filhos, é um “complicômetro”: os avós são encarados como visita, participando do convívio com os netos, na imensa maioria das vezes, somente no Dia de Ação de Graças e no Natal; tios, tias e primos são praticamente entidades inexistentes, já que eles estão dentro de seus respectivos núcleos familiares. Enfim, por aqui, não existe o conceito da “avó que toma conta” ou do “passar a tarde na casa da tia”. Se, por ventura, essas possibilidades existissem, a pandemia também iria acabar, uma vez que as crianças passaram a ser bombas-relógio de contaminação para os mais velhos. Ou seja, a característica do distanciamento social típico do povo americano ficou ainda mais aguçada. Mas, uma coisa eu posso lhes dizer: a situação apertou, mesmo, para os imigrantes. Olhávamos para um lado, para o outro, e nada de uma possível ajuda.

As primeiras semanas foram caóticas. Meus filhos correndo pela casa, achando que o tal home-learning era, na realidade, férias. Dezenas de vezes eu estava no meio de videoconferência e a porta do escritório se abria, trazendo uma confusão de 3 meninos (Asher, 7 anos; Spencer, 5; e Kyle, 4) para a frente da câmera. O bom é que isso acometeu vários dos meus colegas de trabalho e passou a ser motivo de descontração no meio do “papo sério”. Os professores estavam perdidos: como ensinar pais a ensinarem seus filhos no meio da rotina de trabalho cheia de conferências? Aliás, falando das famigeradas tele e videoconferências, se antes eram frequentes, naquele momento, passaram a ser contínuas e em tempo integral.

Bom, na primeira semana, deparei-me com o inusitado de um pai-professor: Asher, que estava no kindergarten (nosso antigo “pré-primário”), tinha que aprender sobre os diferentes tipos de rochas: sedimentares, magmáticas e metafórmicas. Verdade, diferentes tipos de rochas, aos 7 anos de idade!!!! Gente, na minha época, pré-primário não era onde a gente ia para chamar a professora de “tia”, pintar, cantar, brincar e tirar soneca no meio do período? De verdade, acho que nunca me ensinaram sobre os tipos de rocha em toda a minha acadêmica! Ah, detalhe, tudo com recortes, pinturas, gravação da tarefa feita e envio para a professora no final do dia… A sorte que meus dois filhos mais novos não estão no período escolar curricular, então a rotina era mais solta para eles. Nem quis imaginar como os pais com 2 ou 3 filhos em idade escolar de verdade estavam se saindo. Ufa!

Bom, percebemos que, com base na primeira semana, se um plano não fosse estabelecido, a caldo desandava. Percebi que meu trabalho me ocupava mais das 7h às 15hs. Então, as crianças passaram a dormir mais tarde: em vez das 20:30h, iam para a cama entre 21h30 e 22h; acordavam entre 9h30 e 10h30. Do acordar, até as 13h, horário que passou a ser o novo almoço em casa (antes, era às 11h30h), estavam livres para brincar, assim como do pós almoço até às 15h. Depois disso, Asher tinha que estudar.

Paralelamente ao novo horário, redividimos as tarefas do casal. Eu fiquei responsável pelo ensino domiciliar, repassando outras tarefas que já eram de minha alçada. Nada mais justo que eu fosse o professor dele, porque tenho jeito para a educação; afinal de contas, tenho mais de 15 anos de magistério, o que era nada mais lógico. Bom, mais ou menos… Treinado a ensinar adultos em faculdades, pós-graduações, especializações e congressos na área médica, nunca imaginei que alfabetizar alguém era algo tão complexo e capcioso. Aos poucos, adaptei o meu jeito de professor e a coisa fluiu. Porém, o mais importante, mesmo, foi ver aflorar em mim o sentimento de gratidão pelos professores de ensino fundamental e a louvá-los por essa nobre habilidade de educar e treinar o nosso “amanhã”. Sempre tive respeito pelos professores dos ensinos básico, mas passei a venerá-los. É uma arte!

Em todo esse processo de educação desde casa, uma coisa que chamou a minha atenção foi o fato de que, por tudo ser online, Asher, meu filho, tinha prazer em estudar. Nunca reclamava, vinha correndo no primeira aviso de que começaríamos, era uma farra! Ele tinha prazer em me ouvir, fazer a tarefa, ser testado e acertar o exercício. Era como se fosse um grande jogo. A tecnologia, se bem usada, fará a escola ser mais agradável para eles do que foi o nosso antigo sistema de livros, cadernos e cartolina. Bom, nem vou entrar no mérito do mimeógrafo, pois, para eles, coloca-nos em párea com o tiranossauro rex.

Porém, de tudo, o que mais me alegrou foi ver o progresso de meu filho na escola. Ensinar o bê-a-bá para ele e ajudá-lo a progredir foi o grande prazer que essa quarentena me trouxe. No passado, sempre me perguntava “como eu fui alfabetizado”. De verdade, não lembrava do meu processo e me parecia algo impossível, por isso sempre temi que algum de meus filhos pudesse não ser capaz de conseguir. Porém, com o Asher, pude ter certeza que, para crianças nessa idade, tudo que lhes é apresentado é automaticamente absorvido. Uma boa estrutura acadêmica nessa fase é, sim, essencial e fará toda a diferença para o resto da vida de uma pessoa.

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Na realidade, ter participado desse momento de ensinamento de meu filho ajudou a amenizar o incômodo enfadonho da reclusão na pandemia da Covid-19. Fez-me invejar o professor que tem a possibilidade de ter seu filho como um de seus alunos, em qualquer fase da vida, principalmente, na fase elementar da educação. É exagero agradecer à quarentena? Pode ser, mas que ela me deu um presente como pai, ah, ela me deu…

Ontem, 12 de agosto de 2020, foi o início do ano escolar nos EUA. Ver o Asher descer do meu carro, caminhar com sua máscara estatelada em seu rosto, vestindo seu novo uniforme, feliz da vida com sua nova mochila do Homem Aranha, ir para a fila da medição da temperatura, voltar-se para trás e dar um tchau, foi algo que me emocionou. Tenho certeza que, juntos, fizemos um bom trabalho nessa quarentena para o seu futuro. E que venha o “first grade”, Asher!

Adilson Costa
Adilson Costa (Ricardo Matsukawa/VEJA.com)
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