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O transtorno delirante de Dom Casmurro. Ou a traição de Capitu?

Na célebre obra de Machado de Assis, Capitu realmente traiu o marido ou Bentinho sofria de um problema psiquiátrico denominado transtorno delirante?

Por José Alexandre de Souza Crippa
Atualizado em 5 dez 2017, 18h24 - Publicado em 4 dez 2017, 12h00

O romance Dom Casmurro de Machado de Assis é considerado um dos grandes clássicos da literatura em língua portuguesa. Foi escrito em 1899, mas é ambientado no Rio de Janeiro do Segundo Império. Conta a história de Bento Santiago (ou Bentinho, no apelido de criança) e suas rememorações da infância e juventude, o período que passou no seminário e, especialmente, o seu relacionamento e o ciúme de uma possível traição de sua esposa Capitu com seu melhor amigo Escobar. Este é o foco central do enredo do livro, que até hoje levanta calorosos debates, interpretações e estudos discutindo se Capitu, afinal, traiu ou não o seu marido.

Neste contexto, um aspecto torna esta obra única e revolucionária: a história é contada em primeira pessoa, sempre sob a perspectiva de Bentinho. Embora o “narrador não confiável” tenha sido um recurso usado desde o tempo da Grécia antiga, na literatura, ou no expressionismo alemão em O gabinete do Dr Caligari (Robert Wiene, Alemanha, 1920) no cinema, o narrador de Dom Casmurro é o personagem central deslocado no tempo futuro, tendo sua narrativa condicionada à sua própria visão dos acontecimentos.

Isso torna a sucessão de evidências apresentadas por ele altamente questionáveis: a presença de Escobar na sua casa quando da sua ausência; o choro intenso e com grande emoção de Capitu no enterro de Escobar; a semelhança física de seu filho Ezequiel com o possível amante; os famosos “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, entre outras. Além disso, o narrador muitas vezes interrompe o fluxo do texto para se dirigir ao leitor, deixando claro que o seu pensamento está voltado para a busca da cumplicidade.

Dessa forma, Machado de Assis deixa ao leitor o julgamento de confiar nos argumentos de Bentinho ou, por outro lado, detectar nesses mesmos fundamentos um ciúme patológico que vai progressivamente dominando o narrador, particularmente após o casamento. Portanto, na efetiva possibilidade de um não-adultério, o narrador-protagonista provavelmente apresentaria um transtorno psiquiátrico denominado de transtorno delirante.

O transtorno delirante

O transtorno delirante é um distúrbio psiquiátrico crônico que, como a própria denominação define, é caracterizado pela presença de delírios, nada mais que falsas crenças irredutíveis ante a argumentação lógica. Infelizmente, pela própria natureza dos sintomas, os pacientes com transtorno delirante não apresentam capacidade de percepção de sua patologia, o que torna a busca espontânea por tratamento muito pouco provável.

Por outro lado, normalmente as outras habilidades psicossociais e comportamentos gerais dos pacientes permanecem intactos, ou seja, desconsiderando-se os aspectos relacionados à temática ligada ao delírio, o paciente aparenta normalidade. Assim, estes indivíduos geralmente não apresentam outros sintomas psicóticos, como alucinações e continuam a se socializar, funcionando de modo relativamente adequado, pois seus comportamentos não aparentam ser estranhos. Estes são aspectos centrais que diferenciam o transtorno delirante de outros transtornos psicóticos primários, como a esquizofrenia, por exemplo.

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O transtorno delirante é uma condição pouco comum na prática psiquiátrica, afetando aproximadamente 0,2% das pessoas em algum momento de suas vidas. Tende a se iniciar na meia idade ou nas fases mais tardias da vida, sendo que a prevalência entre homens e mulheres é semelhante (com exceção para o tipo ciumento, com maior prevalência entre homens). Entre os fatores de risco estão idade (entre 34 e 45 anos); isolamento social; traços de personalidade narcisista; imigração; baixo nível socioeconômico e estresse excessivo. As causas do transtorno delirante não são conhecidas, embora fatores ambientais e biológicos, como genéticos e bioquímicos pareçam ter um papel significativo no seu desenvolvimento.

Tipos de transtornos delirantes

Os principais tipos de delírios são erotomaníaco (crença de que uma outra pessoa, frequentemente uma pessoa importante, está apaixonada por si); grandiosidade (a pessoa acredita ter poder, conhecimento, fama, riqueza); persecutoriedade (acredita que está sendo prejudicado por um indivíduo, grupo ou organização); somático (a pessoa acredita que apresenta um defeito físico, doença ou condição médica geral, sem uma justificativa real).

Além desses e de outros tipos de delírios, aqui se destaca o transtorno delirante de ciúme, cuja característica central é a firme convicção de que o seu parceiro (a) é infiel. As experiências individuais apresentam acentuados sentidos de auto-referência, pois enquanto os eventos são irrelevantes para os outros, para o paciente apresentam enorme significância devido ao delírio. Como exemplo, o paciente pode seguir o parceiro(a), checar mensagens, de forma a buscar “evidências” que comprovem a infidelidade do(a) parceiro(a).

Neste sentido, voltando a obra Dom Casmurro, se a perspectiva de marido traído de Bentinho estiver incorreta, ele de fato apresentaria um transtorno delirante do tipo ciumento. Caso contrário, óbvio, Capitu foi uma esposa infiel. De qualquer maneira, em qualquer das situações, só não resta uma dúvida: tanto o delirante Bentinho, como o inseguro e traído Bento Santiago precisariam de um bom psiquiatra.

“…a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me…A terra lhes seja leve! ”
Trecho do último parágrafo de Dom Casmurro de Machado de Assis

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* Mas afinal, você acha que Capitu traiu Bentinho? Responda aqui.

 

José Alexandre Crippa

 

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