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As drogas de Trump

Porque alguns medicamentos foram escolhidos e outros excluídos para tratar o homem mais poderoso do planeta

Por Salmo Raskin
Atualizado em 5 out 2020, 17h07 - Publicado em 5 out 2020, 12h18

Durante a última semana foi anunciada a infecção do Presidente dos Estados Unidos Donald Trump pela Covid-19. Já de imediato a equipe médica responsável por cuidar do presidente americano anunciou publicamente os tratamentos instituídos, o que desperta uma enorme curiosidade e discussão: se você fosse uma das pessoas mais poderosas do planeta e tivesse acesso a qualquer recurso disponível para seu tratamento, como este seria feito? Como você analisaria, de maneira imparcial e técnica, sem polêmicas ou politização, a opção terapêutica instituída pelos médicos?

Porque os médicos não prescreveram hidroxicloroquina para Trump?

Como é muito comum na ciência, a investigação da doença em um primeiro momento iniciou pelos chamados estudos in vitro. Estes estudos se basearam em células do rim de macacos africanos verdes (células VERO), células estas cultivadas pela primeira vez em 1962 no Japão, e uma das linhagens celulares mais usadas até hoje. No entanto, descobriu-se que este tipo de célula não é a ideal para estudar mecanismos de entrada (e bloqueio da entrada) de vírus nas células, porque não refletem totalmente o que acontece na célula humana (in vivo). E mais, hoje se sabe que o vírus SARS-CoV-2 entra na célula humana por um mecanismo diferente que seu antecessor, o SARS-CoV-1. Este entra na célula humana por um processo chamado ENDOCITOSE, aonde ocorre a invaginação da membrana da célula humana, englobando a partícula a ser absorvida em um compartimento já dentro da célula chamado Lisossomo. Dentro do Lisossomo o pH é ácido, fundamental para o funcionamento de certas enzimas virais. Neste mecanismo, uma enzima fundamental para a entrada do vírus é a CATEPSINA, que para atuar de forma eficaz, precisa que o Lisossomo esteja bem ácido. A Hidroxicloroquina é uma base, e não deixa o Lisossomo ficar ácido, e assim inibe a atividade da CATEPSINA. Porém a entrada do vírus que causa a COVID-19 (SARS-CoV-2) na célula do pulmão humano não ocorre pelo mesmo processo de Endocitose, mas sim preferencialmente por outro: FUSÃO das membranas do vírus e da célula humana. Conforme acontece muito nos vírus, o SARS-CoV-2 evoluiu, de forma que, para invadir a célula do pulmão, ele entra sem a necessidade de acidificação no Lisosssomo. E quando o processo de entrada é a Fusão, a principal enzima não é a CATEPSINA, mas sim outra que fica na própria membrana da célula humana, chamada TMPRSS2.

Em resumo, o meio in vitro (no laboratório) é muito diferente no in vivo (vida real): na primeira, a entrada do SARS-CoV-2 nas células VERO (de rim) depende da CATEPSINA, visto que elas não têm expressão de TMPRSS2. Porém na segunda, a entrada deste vírus nas células do pulmão depende principalmente da TMPRSS2. Daí a importância de se utilizar linhagens celulares que imitam aspectos das células epiteliais respiratórias quando se analisa atividade antiviral em tecidos responsáveis pela respiração – se queremos ter no laboratório o mais próximo da vida real, precisamos comparar atividades semelhantes.

Todo este conhecimento seria obtido lentamente, com várias pesquisas, para então se decidir pelo uso ou não de drogas como a Hidroxicloroquina. Porem a pandemia atropelou a ordem natural de tudo, inclusive das pesquisas. E somente agora temos estas informações básicas. Para se ter esta clareza, inúmeros ensaios clínicos foram necessários, e comprovaram a ineficiência da Hidroxicloroquina no tratamento da COVID-19. E, sem entrar novamente na gigantesca polêmica formada em torno da Hidroxicloroquina, em especial no Brasil, esta não foi prescrita para Trump porque, no momento em que esta matéria é escrita, outubro de 2020, sabe-se que esta droga não funciona para COVID-19. Tanto é assim que os médicos americanos não a prescreveram para seu presidente, no mundo não há país que tenha instituído esta medicação de forma sistemática e mesmo o FDA (órgão de controle americano) voltou atrás na liberação do tratamento, que hoje só pode ser feito, para COVID-19, na forma de pesquisa clínica.

Quais foram as drogas prescritas pelos médicos de Trump? Na sequência iremos analisar cada uma delas, o motivo de terem sido escolhidas e riscos/benefícios de cada tratamento.

LEIA TAMBÉM: De cloroquina a corticoides: os remédios mais falados contra o coronavírus

Porque os médicos prescreveram já nos primeiros dias o Regeneron?

Apesar de ainda não existirem medicamentos específicos para prevenir ou tratar a COVID-19, eles estão sendo desenvolvidos. Entre os mais promissores estão os chamados “Anticorpos monoclonais neutralizantes”, que são versões feitas em laboratório de proteínas produzidas naturalmente pelo sistema imunológico em resposta a vírus invasores. Anticorpos monoclonais neutralizantes não são drogas novas, e são investigados desde 1970, tanto que o FDA já aprovou seu uso para mais de 79 doenças, desde câncer, AIDS até outras infecções como a causada pelo Ebola. Grande parte do ataque de agentes infecciosos ao organismo humano é feito por um mecanismo conhecido como “chave-fechadura”. O agente tem a chave, que “abre” a fechadura da célula-alvo. No caso da COVID-19, os anticorpos neutralizantes são selecionados para se ligar justamente e especificamente na parte do SARS-CoV-2 (domínio RBD da proteína Spike) que se liga à “fechadura” do vírus nas nossas células (os receptores de ACE2). Ao se ligarem e neutralizarem a proteína Spike de SARS-CoV-2 impedem que a Spike se acople a célula humana e a invada. Porém, da mesma forma que algumas bactérias se tornam imunes a determinados antibióticos, quando estes anticorpos são administrados colocam pressão sobre o SARS-CoV-2, que obrigatoriamente para sobreviver precisa infectar a célula humana. O SARS-CoV-2 reage através de mutações em seu código genético, com o intuito de novamente se tornar irreconhecível aos Anticorpos neutralizantes, criando resistência a eles. Estas mutações também já foram reconhecidas pelos pesquisadores, e um segundo grupo de Anticorpos monoclonais neutralizantes já foi desenvolvido visando impedir a infecção pelas cepas do SARS-CoV-2 que, sob pressão evolutiva, provavelmente mutarão quando tratarmos com o primeiro Anticorpo. É uma “brincadeira de gato-e-rato” na evolução natural do vírus: encontramos forma de neutralizá-lo, e para sobreviver ele tenta encontrar saídas.

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O Regeneron é então um coquetel contendo estes dois Anticorpos Monoclonais, um para neutralizar as sequências não mutadas do SARS-CoV-2, e um segundo já planejado para neutralizar as sequências mutantes. Desta forma, é possível vislumbrar um futuro tratamento para a COVID-19 com um “coquetel” de medicamentos, compostos por vários Anticorpos neutralizantes administrados ao mesmo tempo. Tratamento este muito parecido com o coquetel de medicamentos que mudou a história da infecção pelo HIV. Ainda melhor, existe a possibilidade, no caso do SARS-CoV-2, que estes anticorpos neutralizantes possam ser seguros e eficazes inclusive para prevenir a infecção, ou seja, seriam usados como medicamentos profiláticos. Oito pesquisas clínicas estão em andamento para investigar a segurança e eficiência dos anticorpos monoclonais no tratamento da COVID-19. Em estudos feitos com macacos e hamsters a doença foi prevenida pelo Regeneron. Em estudos de Fase 2 houve boa evidência de redução da carga viral, tanto em vias aéreas superiores quanto inferiores. O detalhamento da identificação dos anticorpos que passariam a ser usados em pesquisas em humanos foi publicado recentemente na SCIENCE (https://science.sciencemag.org/content/369/6506/1014). Estudos clínicos em Fase 3 estão em andamento, porém não foram concluídos e resultados não foram publicados ainda em revistas científicas. A Empresa anunciou que está em fase adiantada de pesquisa Fase 3, tanto para pacientes hospitalizados quanto não-hospitalizados, assim como contatos caseiros de indivíduos infectados, visto que há expectativa de que a droga possa ser segura e eficaz até de forma profilática, o que seria espetacular. Cita que mais de 2 mil pessoas já receberam a droga em pesquisa, e que se demonstrou segura. Porém, só saberemos realmente se REGENERON é eficaz e seguro ao final dos estudos de Fase 3 de pesquisa e com a publicação dos dados em revista científica. Se tudo der certo, aí sim, teremos pela primeira vez medicamentos específicos para prevenir e tratar a Covid-19.

Foi baseado nestes conhecimentos preliminares que o mais precocemente possível os médicos de Trump administraram por via endovenosa uma alta dose única (oito gramas) de Regeneron. Como esta droga ainda não está aprovada pelo FDA, a saída foi a Empresa oferecer a droga, sob solicitação dos médicos de Trump, no modelo “uso compassivo” ou “por compaixão”. Normalmente, o processo de liberação por esta via é demorado, e requer que a empresa submeta o pedido ao FDA, argumentando que:

Sua doença é séria ou pode causar risco de vida imediato;

Nenhum tratamento está disponível ou você não recebeu ajuda de tratamentos aprovados para sua doença;

Você não é elegível para ensaios clínicos do medicamento experimental; Seu médico concorda que você não tem outras opções e que o tratamento experimental pode ajudá-lo;

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O seu médico considera que o benefício justifica os riscos potenciais do tratamento.

A empresa que fabrica o medicamento concorda em fornecê-lo a você.

No caso de Trump, por motivos evidentes, este processo burocrático levou apenas horas.
Não poderia deixar de ressaltar que um dos principais líderes mundiais nas pesquisas de Anticorpos monoclonais é Michel Nussenzweig, principal investigador do Laboratório de Imunologia Molecular do conceituadíssimo “The Rockefeller University” em New York. Michel é brasileiro, filho do casal de pesquisadores brasileiros Victor e Ruth Sonntag Nussenzweig, ambos com importantíssima contribuição mundial no desenvolvimento de vacina para a malária. Muita pena que este DNA de primeira teve que deixar o Brasil. O nível das pesquisas de pais e filho é sem dúvida, digno de prêmio Nobel!!! Mais um entre muitos exemplos para que um dia o Brasil valorize a pesquisa científica e seus pesquisadores!!

Porque os médicos prescreveram O Remdesivir?

Assim como Regeneron, Remdesivir é uma droga antiviral, mas com mecanismo de ação diferente. Remdesivir é muito parecido bioquimicamente com a base nitrogenada Adenina (A), presente naturalmente no código genético de todos os organismos vivos, e, portanto, pertence ao grupo de drogas denominadas “Análogos de Nucleosídeos”. O vírus ao copiar seu material genético, na presença de Remdesivir, se confunde e incorpora ao seu genoma o sintético Remdesivir ao invés da Adenina “natural”. Remdesivir incorpora bases nitrogenadas na sequência genética do SARS-CoV-2 especificamente no lugar que codificará para a enzima mais importante que o SARS-CoV-2 usa para copiar seu material genético. Esta incorporação de nucleotídeos sintéticos interfere na capacidade de replicação do SARS-CoV-2, distorcendo a forma do RNA e provocando a finalização do processo de cópia viral.
Meses antes da doença afetar Trump, Remdesivir já havia recebido uma aprovação para uso Emergencial pelo FDA, visto que os estudos clínicos demonstraram que a droga reduziu o tempo de recuperação de pessoas hospitalizadas com Covid-19 de 15 para 11 dias e que talvez pode reduzir as taxas de mortalidade entre aqueles que estão muito doentes. Inicialmente a autorização do FDA foi dada apenas para doentes muito graves que estão necessitando de oxigênio, porem, após a publicação de um artigo científico no JAMA em 21 de Agosto, o FDA aprovou emergencialmente tambem para casos moderados. O medicamento é aplicado por via endovenosa durante 30 a 60 minutos, uma vez ao dia por cinco dias consecutivos. Como toda Droga, Remdesivir também tem efeitos colaterais importantes, por isto a indicação apenas para casos moderados ou graves. No caso de Trump, que a princípio pode ser considerado leve até agora, talvez tenha sido prescrita nesta etapa para “tentar de tudo” no sentido de impedir que o quadro evoluísse mal.

Assim como no caso do Regeneron demos crédito a um pesquisador brasileiro, aqui também cabe um crédito ao Dr. André Kalil, um dos principais pesquisadores de Remdesivir no mundo. Nascido em Bagé e graduado na Universidade Federal de Pelotas, está radicado nos EUA há trinta anos e atuante na University of Nebraska Medical Center (https://veja.abril.com.br/saude/medico-brasileiro-e-o-principal-nome-das-pesquisas-com-o-remdesivir).

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Porque prescreveram corticoide?

Covid-19 tem duas fases naqueles que ficam gravemente doentes. Na primeira, o vírus se multiplica e invade as células pelas quais ele tem preferência, no caso as pulmonares. Na segunda, o sistema imunológico muitas vezes reage exageradamente ao vírus, criando uma intensa atividade inflamatória que pode ser difícil de controlar. Por exemplo, Regeneron tem o objetivo de evitar a replicação do vírus, e, portanto, quando utilizado, deve ser administrado na fase bem inicial da doença. Já os corticoides visam diminuir a resposta que o organismo gera para se defender do ataque viral, atuando, portanto, na consequência do ataque viral.

Os corticoides são potentes anti-inflamatórios, já foram testados em mais de mil pacientes com COVID-19, e provaram reduzir o número de mortes em um terço. Aqui também ressalto uma importante contribuição brasileira, em artigo recém-publicado na revista JAMA, aonde 299 pacientes com COVID-19 moderada e grave, acompanhados por vários Centros espalhados pelo Brasil foram analisados, e aqueles que receberam corticóide tiveram necessidade de usar ventilador durante menos dias do que aqueles que não usaram (https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2770277).

A maioria dos protocolos orienta que corticoides devem ser administrados apenas para pacientes que estejam em estado grave, recebendo oxigênio. Não há evidência de que possam ajudar pacientes no estágio leve da doença, como o Presidente Trump, podento até prejudicar, pois ao baixar a imunidade do paciente pode deixá-lo vulnerável a vários agentes infecciosos.

Cabe ressaltar que neste momento só existem evidências demonstrando o benefício dos corticoides nos casos em que o paciente está em intensa atividade inflamatória. O uso crônico de corticoides sabidamente reduz os mecanismos de defesa do organismo, fato que parece não ocorrer de maneira tão intensa no uso por curto período de tempo, o que torna racional sua não utilização numa fase muito precoce da doença. Mas o momento certo para se iniciar a medicação, se logo no início da fase inflamatória ou numa fase mais avançada ainda carece de evidências científicas.

Porque prescreveram outras drogas, como zinco e vitamina D?

Zinco, Vitamina D, Famotidina, Melatonina e uma dose diária de Aspirina também foram prescritos para o Presidente Trump, porém estas drogas estão longe de ter evidência científica de utilidade no tratamento para COVID-19. Além da falta de comprovação da utilidade, não se sabe como este coquetel de drogas interage em pacientes com COVID-19, muito menos naqueles que estão em uso de Regeneron, Remdesivir e Corticoide.

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Por ser uma doença inflamatória e que aumenta a formação de coágulos, é quase um consenso que o tratamento profilático, em um homem com mais de 70 anos com sobrepeso (conhecidos fatores de aumento de risco), envolva a administração de medicações anticoagulantes mais efetivas do que a Aspirina, como a Enoxiparina. Não se tem claro porque a equipe médica de Trump não optou por este caminho, a anticoagulação efetiva, para o qual há certo consenso médico, mas prescreveu vários outras drogas para os quais não há.

As lições que ficam sobre o tratamento de Trump

O episódio dramático da doença no homem mais poderoso do planeta mal começou, e já nos traz inúmeros questionamentos. Será que não houve um exagero de oferta de drogas pelo paciente se tratar de quem se trata? E a falta de prescrição com anticoagulantes mais eficientes? Se os médicos que atendem Trump se baseiam nas mais recentes evidências científicas, e, portanto, não prescreveram Hidroxicloroquina, porque prescreveram Remdesivir e Regeneron, duas drogas que ainda não tem comprovação científica? Será que o uso “por compaixão” não vai interferir nas pesquisas do próprio Regeneron, considerando que somente dez pessoas no mundo receberam o medicamento nesta situação, fora do ambiente de pesquisa? Se Trump se curar vão dizer que foi por causa desta droga (pode ou não ter sido, mas de todas ofertadas, é a única que poderia ter um efeito tão rápido no quadro), e se o desfecho não for bom vão dizer que a droga não foi eficaz e pode ter até atrapalhado (pode ou não ter tido influência). Será que os voluntários da pesquisa desta droga vão continuar aceitando a possibilidade de fazer parte do grupo placebo, onde se recebe não a droga, mas uma substância inerte, se ela “salvar o homem mais poderoso do mundo”? Teremos voluntários para a continuidade da pesquisa desta droga “se ela não salvar o homem mais poderoso do planeta”? E “o homem mais simplório do planeta”, também terá acesso a este tratamento de altíssimo valor “por compaixão” ou subsidiada por seu Governo? Se drogas para evitarem a infecção ou a replicação forem realmente efetivas apenas se usadas bem precocemente na infecção, dependendo então de diagnóstico bem precoce, o cidadão comum terá acesso a elas? E se tiver acesso, terá condições financeiras para pagar? Os governos fornecerão gratuitamente?

Dentre as dúvidas acima, um fato é inquestionável: na hora de tratar a pessoa mais poderosa do mundo e com acesso a quaisquer tratamentos, seus médicos não hesitaram em dar medicações experimentais, com o principal objetivo de salvar sua vida, mas também preocupados com prováveis críticas de “não se fazer tudo o que está à disposição”. E é aí que reside uma imensa controvérsia: justamente por serem experimentais, sem a evidência científica de que vão salvar a vida ou mesmo que sejam efetivas, e podem ter efeitos colaterais ainda desconhecidos e prejudicar a saúde do presidente americano. E então voltamos a uma das discussões mais complexas que a pandemia do COVID-19 nos trouxe: em uma pandemia por um vírus que causa tanta morbidade e mortalidade, podemos abrir mão da Medicina baseada em evidência, algo que leva muito tempo, por vezes anos, na ânsia de salvar vidas? Os argumentos são muitos, e é muito difícil afirmar quem está certou ou errado: alguns podem argumentar que drogas sem evidência científica do mais alto nível poderiam ser usadas dentro da relação médico-paciente como decisão ao nível individual, sempre e somente com consentimento de quem vai receber o tratamento, mas não de forma ampla, coletiva e pública. Outros poderiam argumentar que deixando esta decisão para tal relação profissionalmente tão intima quanto é a do Médico e seu paciente, não há como controlar o que realmente será informado a cada paciente e como será informado o grau ou a falta de evidência científica. Ou seja, em tese, pacientes poderiam receber informações enviesadas. E se esta oferta (e aceitação) individual envolver pessoas públicas, como Presidentes, qual o impacto que isto traz para a o setor público como um todo? A inequidade, que infelizmente não é novidade nem lá e nem aqui, salta aos olhos de maneira gritante no episódio do tratamento do Presidente Trump, e entristece a todos.

Também se poderia argumentar que vidas não tem preço, e que na situação crítica de saúde pública que vivemos antes tentar fazer um tratamento que tenha qualquer chance de funcionar que aguardar o paciente ficar muito doente e não conseguir reverter. Neste caso fica o questionamento de tratar com o que e quando, sempre que o risco de morrer seja maior que o risco de qualquer tratamento. Para aumentar a confusão, a ciência é tão mutável quanto o vírus – o que hoje é uma verdade amanhã pode-se descobrir que não seja e mudar todo pensamento. Temos vários exemplos na história sobre isto.
Seja qual for a linha de pensamento, médicos devem sempre obedecer dois fundamentos básicos da medicina: Primum non Nocere (primeiro não fazer o mal, o que ocorreria quando se dá um remédio que traz consequências piores que a doença em si), e o código de ética médica: “É vedado ao médico não se utilizar de todos os recursos a seu dispor no tratamento do paciente”. E temos que aprender como conciliar estes dois mandamentos: a pandemia de COVID-19 nos mostra que pode não ser tão simples, mesmo em se tratando do tratamento do homem mais poderoso do planeta, para o qual acesso ao que há de melhor e mais caro não é um obstáculo…..

Se não há consensos agora, pelo menos que a experiência da COVID-19 nos traga respostas para as futuras epidemias.

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(Gilberto Tadday/VEJA)
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